sábado, 26 de abril de 2008

Os braços fortes

Quando não tenho trampo nem pilates nem sobrinho na porta do quarto perguntando “Tia Poli já acordou?”, gosto de me dedicar a um esporte mais que radical: dormir profissionalmente. Às vezes, num misto de insanidade e auto-punição, coloco o despertador pra tocar, abro os olhos, agradeço a Deus poder dormir por tempo indeterminado e volto para Morpheu que, se de carne e osso fosse, se daria muito bem comigo, porque me amarro naqueles braços fortes e imprevisíveis.

Dia desses, enquanto jazia tranqüila, tive um sonho mais que tórrido com Marcelo, um ex-ficante dos tempos de putaria agressiva. No sonho ele era ele mesmo, só que aditivado com dez doses de catuaba na veia, coisa de enrubescer Dercy Gonçalves e Aracy de Almeida numa só tacada. E o pior de tudo: eu negava fogo. Sinceramente, negar fogo pra homem atiçado é pior do que o leite derramado em vão por oitocentas vacas profanas. Acordei mal. Sempre me orgulhei de minha putice e na hora do vamo vê, da finalização, do atendimento ao cliente, estava eu lá, posando de virgem dos lábios de mel. Claro que faço isso de vez em quando, mas aí já é receio de dar pra qualquer amigo e estragar uma relação maneira por uma trepadinha tola.

Porém, esse não era o caso, porque esse ex costumava me comer com o devido desrespeito necessário às fodas bem-sucedidas. No dia seguinte, quase liguei pra ele. Mas Sofia, amiga que atura minhas confissões de gaveta há mais de 13 anos, foi firme:

-Não liga não, bonita, não carece.
-Ah, acho que ele vai ficar envaidecido.
-Fala sério, você não tá nem aí pro ego dele, só quer dar pro cara!
-É, né?
-Gata, é melhor alugar um homem do que ligar pra Marcelo.
-Nossa, que radicalismo...
-Você reclamava dele à beça, dizia que ele era um confuso...
-É, ele pagava de assustadinho da Estrela.
-Porra, na boa, mulher que dá pala pra assustado não merece perdão!
-Ele não é um babaca, vai.
-Ih, começou a usar os verbos no tempo presente, que perigo...
-Ele não morreu, uai!
-Não é porque ele tá vivo que virou o cara mais maduro da atualidade, baby.
-Você tem razão, é que ando achando todo mundo tão mais ou menos...
-Mas é isso mesmo, a estética da mediocridade é avassaladora, poucos se salvam.
-E aí, como se faz?
-Não faz, compra pronto!
-Hahahahahahaha! Você tá me sugerindo um garoto de aluguel, né?
-Eu não disse isso!
-Não disse, mas pensou...
-Penso nisso há um tempo.
-Aham...
-Tenho uma proposta pra te fazer, inclusive.
-Jesus...
-Sabe a Cassandra, que estudou com a gente no BRASAS?
-Claro que sei.
-Então, ela alugou um ótimo e quer passar a indicação pra gente.
-Putz, pagar por sexo é um pouco demais!
-Ué, você vive rachando conta de motel, não é a mesma coisa?
-Claro que não, rachar motel é normal!
-Normal porra nenhuma!
-Tem razão, não é normal porra nenhuma! Acho que já me acostumei com essa realidade.
-É triste depois de abrir as pernas ter que abrir a carteira...
-Não dramatiza também, vai, a gente só conhece homem duro, não dá pra exigir camarões grelhados e champagne no balde de gelo...
-Tá certo, vamos continuar fingindo que isso tudo não é com a gente...
-Melhor regular as doses de realidade senão a gente pira, belona.

Fui pra casa pensando na aspereza das situações que a vida nos imputa e cheguei mais uma vez à conclusão de que alugar um homem é muito hardcore pro meu rockzinho progressivo. Não sou mulher disso nem nunca vou ser. O fato é que aquele papo todo me deu um sono fudido. Tomei uma taça de vinho suave (porque não faço a linha refinada), quarenta gotas de tintura de valeriana e parti pros únicos braços fortes disponíveis no momento.

Pelo menos não teria que abrir a carteira depois.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

O privilégio

Minha amiga Dani é quatro anos mais nova que eu. Agora isso não faz a menor diferença, mas na época em que nos conhecemos ela era a criança virgem e eu, a putinha iniciante. Se soubéssemos que a vida nos traria tanta realidade, teríamos sido gurias pra sempre. Passávamos o dia entre pas de deux, grand jetés e sapatilhas de ponta. Nosso sonho era dançar no Municipal e, para tanto, vivíamos a encostar o pé na orelha e a fazer cara de que aquilo não doía nada. Mas isso tem tempo. Isso é dos idos que dieta se chamava regime, que só se beijava um homem por noite e que ainda dava pra namorar dentro do carro nos mirantes da cidade. Uma época onde ninguém discutia se o tomate era transgênico e nem se a gordura era hidrogenada. Bons tempos.

Já adultas, perdemos o contato. Mas a vida, sempre disfarçada em sua falta de sentido, tratou de nos reaproximar. Nos esbarramos numa praia de noite, onde falamos de novas questões e de velhos medos, como se não tivesse se passado nem uma semana. Àquela altura, namorar no carro já era bem perigoso, mas ainda se beijava apenas um homem por noite. Bons tempos.

Depois disso, fiquei perdida e acho que ela também. Essa coisa de ter de ser bem sucedida, gostosa, bem comida e simpática foi demais pra nossa ética interna. Isso foi mais ou menos quando regime passou a se chamar vida light e quando mudávamos de profissão após cada viagem a Ibitipoca. O fato é que não tínhamos nenhum medo do perigo de sermos nós mesmas, ainda que isso significasse o caos completo. Bons tempos.

Mais recentemente, na UFF, mesmo em cursos diferentes, passamos a preencher de interseções nossos círculos de amizade. Nesse momento ficou claro como era antiquado beijar um homem só por festa e notamos que, apesar de muito vigorosas e gostosas, já não éramos mais tão meninas assim. Mesmo sem perceber, tínhamos completado quinze anos de amizade. Bons tempos.

Agora Dani está nos States, casada com um gringo sangue bom e trabalhando na área que escolheu. Lá ela é a brasileira gostosa, a exótica, a tesuda. Mas sente falta daqui, do cheiro de nossas risadas e do descompromisso das cervejas geladas que só nós sabemos tomar. Não ter amigos por perto é duro, mas ela sabe que estou sempre pensando nela. Estamos separadas, mas juntas. Esse é o grande barato da história. Tem gente que não tem isso na vida. Nós duas conquistamos o privilégio de sentir saudade.

E pouca coisa deve ser pior do que não sentir nada.

Esse risco não corremos. Conosco, todos os tempos são bons.

domingo, 6 de abril de 2008

A planilha

Um belo dia, Helena começou a refletir sobre sua performance etílica. Pensou que se dos vinte e poucos aos trinta e poucos tinha bebido de forma industrial pelo menos três vezes por semana, estava na hora de, aos trinta e muitos, começar a reduzir os danos. Queria era ficar bebinha e facinha com quem merecesse o crédito e parar de dar condição pra qualquer maluco que ficou muito mais gato e interessante só por conta da birita. Tinha perdido a conta de quantas vezes teve de contar o dinheiro que lhe restava na carteira, para, aí sim, calcular se na noite anterior tinha pego um táxi, comido um podrão, ou mesmo comido alguém num desses moteizinhos de quinta da Lapa, que não têm nem camisinha à venda. Também foram muitas as vezes que teve de ligar pras amigas e perguntar se tinha tirado a roupa na praça, dançado can-can em cima da mesa, chamado algum playboy fortinho de viado ou outras coisas do gênero, que só acontecem com os bebuns.

Resolveu, do dia pra noite, que sua vida agora seria cool. Seu passado é que tinha sido trash.

Quando foi comunicar à melhor amiga, teve apoio incondicional:

-Muito legal, boneca, acho que tá na hora de ficar chic!
-É...
-Amnésia alcoólica é cafona!
-Pois é, fora o corpitcho, que tá merecendo atenção.
-Claro, não adianta nada tanto pilates, tanta caminhada, se a birita excede os limites.
-É, quero ficar gostosa mesmo, esquema arrasando no recreio.
-Já sei o que você vai fazer!
-Claro que sabe, acabei de te falar, doida!
-Não, bela, você disse o que você quer fazer e eu, como produtora cultural, vou te dizer como você vai colocar seus planos em prática. E de graça, viu? Só porque você é minha camarada.
-Sei...
-Lembra daquela frase da Yoko Ono, que diz que droga é o segundo copo quando o primeiro já matou a sede?
-Claro, porra, eu até tive que te explicar o significado na época porque você não entendia, lembra?
-Lembro, mas abafa esse caso! A questão é que você não pode parar de beber definitivamente, porque senão vai ficar chata demais e ninguém vai te aturar.
-E quem disse que quero parar? Quero beber socialmente, se é que isso existe...
-Então, um caso típico pro Excell!
-Como?
-Claro! Se ele faz tantas planilhas, por que não poderia organizar sua freqüência etílica?
-Gata, você quer fazer um cronograma, é isso?
-Não, querida, é mais que um cronograma. É uma planilha completa, com custos, freqüência e, principalmente, flexibilidade, porque, por exemplo, se combinarmos que você vai beber até dez chopps por semana e se, por conta de sua vida social intensa, você, numa semana qualquer, exceder esse limite, a gente vai e compensa nas duas semanas seguintes, onde você vai poder beber menos sem, com isso, sair da linha e nem ficar paranóica, sacou?
-Porra, essa sua faculdade até que adiantou de alguma coisa, hein, filha? Gostei!
-Desculpa eu ter nascido, tá?
-Aqui, vamos tomar umas então, pra comemorar?
-Claro, daí já começamos a esquadrinhar nossa tática, ok?
-Isso!

Foram e curtiram cada gole com uma alegria inusitada. Lá pelo quinto chopp, apesar do desejo de beber mais e mais, pensaram na Yoko e fecharam a conta, decidindo ir pra casa apenas levemente altas. A produtora cultural, imbuída da proposta, no dia seguinte enviou a planilha hepática pra amiga.

Que, apesar de ter nascido Helena, não queria morrer Heleninha.