terça-feira, 30 de março de 2010

Fidelidade

Dia desses Ditongo disse a Diálogo:

-Diga algo desnecessário!

Didático, Diálogo divagou

E ditou:

-Desnecessário é pesar a dúvida mais de uma vez!

Ditongo entendeu

Que fiel é quem muda de balança

Sem desdenhar da dádiva

quarta-feira, 24 de março de 2010

Lobos maus não dão em árvore (pro Clube da Leitura)

Diego desde menino teve de se adaptar à própria dificuldade de completar um raciocínio. Não por estupidez, que sempre foi bom aluno, mas, sim, pela mais pura e cristalina gagueira. Pensando bem, para que houvesse justiça no mundo, uma pessoa gaga devia, no mínimo, ser belíssima. Mas infelizmente a vida não é justa e muitos gagos são também desprovidos de beleza esfuziante. Era esse precisamente o caso de Diego, que não marcava presença no verbo, nem tampouco era um Rodrigo Santoro. Se bem que, pensando melhor, se o Rodrigo Santoro fosse gago, todo mundo ia achar injusto do mesmo modo, o que nos leva a concluir que justiça é uma coisa que depende muito do ângulo de onde você parte. Se seu namorado fala o rato roeu a roupa do rei de Roma em menos de dez segundos, tá tudo ótimo. Agora, se ele não consegue nem te dizer o placar do jogo de futebol sem ter que fazer mímica, você começa a se encher de questionamentos.

Mas, voltando ao Diego, ele lê muita Playboy. Ler no caso é uma forma gentil de dizer que sua mão tem mais cabelo que todos os Novos Baianos juntos. Quem o alfabetizou no cinco a um foi seu pai, homem justo, mas absolutamente despreparado para ter um filho diferente. Gritava com o moleque pra que ele falasse mais rápido e, dependendo de quantos conhaques tinha tomado, o obrigava a ler trechos de Shakespeare pros familiares nas festas de final de ano. Costumava dizer que o bardo inglês era bom pra formação do caráter. Não o dele, naturalmente. Nem o de Diego, tampouco.

Os anos foram passando até que chegou a hora do menino perder a virgindade. Seu velho o levou a um rende-vouz, avisando às moças que por lá trabalhavam que ele era mudo de nascença, por problemas no parto. Para não ariscar, nem gemido o guri soltava e, reza a lenda, a mudez fez com que sua língua ficasse conhecida por dizer coisas surpreendentes.

Quando saiu de casa, teve sorte e começou a se dar bem por aí. Descobriu que o menos é mais e tornou-se dono de um poder de síntese de dar inveja a qualquer revisor de textos. Nessa altura já tinha passado por vinte fonoaudiólogas e quatro cursos de interpretação, mas a única coisa que realmente adiantava no seu caso era falar pouco. Tinha se conformado com seu jeitinho pausado de ser e começava a ver o charme de sua condição. Outro dia, inclusive, foi a uma sinuca com a gatinha que todo dia vai protocolar alguma coisa no seu andar, só pra pingar quatro gotas de adoçante no café e dizer que precisa emagrecer. Lá pela terceira partida, quando dava show no salão, percebeu que a menina estava doidinha pra conferir se ele encaçapava aquilo tudo mesmo ou se estava só se exibindo. Afinal de contas, mulher nenhuma repete que precisa emagrecer se não está a fim de ouvir elogios. Quem está se sentindo gorda mesmo, não pergunta nada, só se veste de preto e pronto. Assim como quem é gago não fica por aí puxando papo a torto e a direito. Todo gago é naturalmente seletivo. Ele precisa pensar na frase antes, analisá-la e até mesmo decorá-la. Dessa forma, por diferença de pressão, gagos acabam sendo ótimos ouvintes. Pensem nisso, faz todo o sentido.

Aliás, se houvesse mesmo justiça no mundo, teriam mais Diegos à solta por aí, pois eles, como lobos maus que são, te vêem melhor, te escutam melhor e, ainda por cima, te comem.

sábado, 20 de março de 2010

Duas folhas

Acordou carnívora e cortou cebolas

Viu flores no asfalto e desconsiderou-as como damas

Ouviu bater o próprio sino pequenino e se fez de surda

Barateou a intuição em nome da lógica

Sem perceber o quanto isso lhe sairia caro mais tarde

Acreditou

(Coitada)

Que duas folhas de papel seriam suficientes para enxugar suas entranhas

terça-feira, 16 de março de 2010

Sexta-feira

Só queria dormir no ar condicionado

Mas era fim de noite e ele a escolheu pra dizer que mulher é flecha e homem, poema

Úmida, alvejou-lhe com os oito números que a separam de desconhecidos

No caminho, recebeu uma mensagem

Pra quem só esperava um táxi

Ela ganhou frente

E verso

quarta-feira, 10 de março de 2010

A horta (pro Clube da Leitura)

Muito antes de optar pela medicina, Armando, proctologista renomado, já tinha curiosidade sobre as partes do corpo que não pegam sol. Como gosta muito do que faz, encontra sérias dificuldades em se desligar do hospital, chegando, por vezes, a dar plantões de quarenta e oito horas. Quem mais sofre com isso é Clara, sua esposa, que, para se impor, cobra o preço pela ausência de seu personal fucker no exato momento em que ele põe os pés em casa. Para evitar atritos desnecessários, o devoto e bem-dotado esposo paga tudo numa moeda que só pode ser medida em gemidos e sussurros.

O fato é que não podiam reclamar, pois tinham, em média, quatro relações sexuais por semana, incluindo, naturalmente, a boca de cena e o backstage. A princípio, Clara nem gostava das investidas por trás, mas, por pura cumplicidade, deixava a coisa acontecer, pois sabia que Armando tinha muita dificuldade em separar o trabalho do lazer. Assim, sem perceberem, já tinham completado dez anos de bem-sucedida anatomia em braile. Que o Greenpeace não nos ouça, mas, por vezes, chegavam a extrapolar no quesito euforia e cometiam a desfaçatez de transar com o chuveiro elétrico ligado. No fundo, no fundo, isso muito os excitava, até mesmo porque esse negócio de ser certinho demais tem uma hora que começa a ficar cafona.

Apesar do aparente equilíbrio de forças, Armando guardava dentro de si o desejo velado de manobras em sua retaguarda, mas tinha medo de pedir isso à esposa. Afinal, mesmo topando um contra-fluxo numa via que, em tese, é somente de mão única, Clara era uma mulher radical e achava que seus anelares tinham sido feitos apenas para carregar alianças, pregar botões e fazer cafuné no maridão. Qualquer coisa além disso não passava de perversão.

Já Armando, por mais que se debruçasse em livros e compêndios sobre o assunto, não conseguia encontrar um motivo fisiologicamente coerente para explicar sua vontade. Chegava a perder o sono tentando achar uma forma de dizer à mulher que, apesar de muita nota dez na faculdade, não se importava em ser reprovado num eventual teste da farinha. Enquanto não encontrava os melhores argumentos, ia se distraindo com os legumes orgânicos comprados na feira ao lado de casa. Tudo ia muito bem até chegar o dia em que, pro seu azar, foi surpreendido pela esposa justo na hora em que semeava um pepino japonês em terreno pouco ortodoxo. Depois do choque inicial e de três meses pedindo desculpas, parou de tentar reconquistá-la, pois entendia o companheirismo também como tolerância ao diferente. E, se ela não conseguia perdoá-lo, era porque não o aceitava por inteiro. Assim, sem olhar pra trás, recolheu seu inhame e pediu à esposa que fosse despejar aquele agrotóxico em outra horta, pois, definitivamente, tanta discussão tinha lhe tirado o apetite.

Depois dessa xepa, refestelado em sua cama vazia, Armando procurou algo de útil na TV e só conseguiu encontrar programas de culinária. Resignado, parou de zapear e, em meio a ingredientes e receitas, sentiu uma paz incrível ao se dar conta de que cu doce só serve mesmo como sobremesa de pica.

domingo, 7 de março de 2010

Ordem do dia

Apagar incêndios

Acender fachos

Bater no tatame

Tirar órgãos do repouso

Pensar à frente

Ter dois pés atrás

Dançar conforme a música

Sapatear em corações

Ficar molhada

Engolir a seco

Dar sem gemer

Gemer sem dar

Dizer da boca pra fora o que acontece útero adentro

Falar no intervalo entre as linhas

Mas nunca

(Nunca)

Ser terra firme

Para pés indecisos

quinta-feira, 4 de março de 2010

Cinco lembretes

1) Os opostos se distraem.

2) A ressaca moral é o porre que não deu certo.

3) Adeptos do chá de cadeira esquecem que malemolência é fundamental.

4) Pior do que não ter é não saber mexer.

5) Qualidades e defeitos deveriam dançar mais juntos.