sábado, 28 de junho de 2008

O casamento da filha da Dirce

Desde que minhas amigas começaram a parir de forma desenfreada e passei a freqüentar mais aniversários de um ano do que festas de adultos, optei por evitar casamentos, num mecanismo de defesa de minha mente balzaca, já muito permeada por reflexões. Mas, em alguns casos, fica feio faltar. Assim, fui parar no casamento da filha da Dirce, mulher que ajudou a me criar num tempo em que mamãe e papai trabalhavam como mouros pra sustentar quatro filhos. Dirce, além de tomar conta da gente, de dar almoço e de fazer bolo de chocolate, nos enchia de carinho. Tenho a impressão de que ela nem sabe o quanto me ajudou nos tempos de escola, entrando no quarto com suquinho de laranja e pão com ovo mexido. Vinha sempre na hora certa, quando os neurônios queimavam e eu estava começando a me sentir burra. Lembro também de bem pequenininha ir passar os fins de semana com ela na casa de sua família em Campo Grande, com seus mil e quinhentos irmãos, que me levavam pra festa junina, pro parquinho e prum monte de coisas que eu, garota de apartamento, curtia até o caroço. Dirce aturou muita coisa mais: caçula abusada que era, eu, além de fazer xixi na cama, tirava a roupa toda e, daquele jeitinho mesmo, parecendo um sachê de uréia, pedia espaço pra dormir no colchonete dela. Nem preciso dizer que não houve uma única vez que ela não me colocasse pra debaixo da coberta, tão quente como sua risada gorda. Dircinha se casou com o namorado de anos e, quando já tinha parado de trabalhar pra dar mais atenção à família, ficou viúva com dois guris pra criar. Essa foi a única vez que vi seus olhos redondos totalmente sem brilho. Mas essa coisa de filho pra criar é mesmo impressionante e, rapidinho, ela tava de pé de novo, trabalhando pra dar o melhor pros moleques, no meio de um monte de cunhadas que achavam que eram melhores que ela por terem curso superior e marido rico. Devagarzinho, fez seu próprio negócio, formou a menina advogada e botou o garoto na faculdade de farmácia. Mas ontem foi, sem dúvida, seu dia de glória: casou a filha com um rapaz bacana. Quando vi Dirce de longo entrando na Igreja e, logo depois, seu caçula acompanhando a irmã, fazendo as honras do pai, senti um orgulho imenso dela, de sua altivez e de sua incontestável bondade.

Na recepção, enquanto era tratada como madame, ouvi a pergunta de sempre:

-Tá namorando, filha?
-Ih, Dircinha, tá meio difícil...
-Vem pra Campo Grande, ném, aqui tem de sobra.

Esse é o espírito dela, mostrar que sempre tem de sobra. Ela, que cresceu com tão pouco, que deu tanto duro, vem falar de sobra. Mas a hora da verdade veio mesmo quando ela soltou, distraidamente, o valor de seu rendimento mensal, bem maior do que o meu, que tenho duas faculdades e um curso técnico completos.

Essa, sem dúvida, foi a melhor notícia da noite.

Essa é minha Dircinha.

Me deu até vontade de chorar de tanta emoção.

Mas não tava a fim de pagar pra ver se meu rimmel de madame era mesmo à prova d’água.

domingo, 22 de junho de 2008

Dó maior

Ele é o último a cumprir com o combinado e o primeiro a ter certeza da própria dúvida.

Tem fadiga pra intimidade e padece de profunda complexidade.

Gosta de dizer que é um cara simples, mas é tudo charme de artista.

Já ela é a primeira a fazer justiça com as próprias mãos e a última a duvidar de que ele um dia vai perder o medo do escuro.

Tem síndrome do pânico e padece de alergia a mentiras homeopáticas.

Gosta de dizer que é uma mulher forte, mas é tudo da boca pra fora.

Juntos, são mais separados do que notas dissonantes numa sinfonia em homenagem às almas dormentes.

Sinfonia em dó maior.

De mãos atadas.

E unhas curtas.

domingo, 15 de junho de 2008

Fora da área de cobertura

-Amiga, tá podendo falar?
-Tô aqui vendo um filme na TV, mas diga lá!
-Olha a situação: tava aqui no Mineiro com Clarinha, tomando umas, daí chega Alexandre naquele esquema “não é porque a gente não namora mais que eu não posso ser seu amigo nem ficar me lamentando com suas amigas, como bom coitadinho que sou”, sabe assim?
-Ui, sei.
-Pois então, sentou na nossa mesa e não vai embora nem fudendo, tanto que foi até pegar um casaco no carro.
-Vixe, quem pega casaco no carro quer ficar até de manhã...
-Então, só preciso de um telefonema seu urgente daqui a 5 minutos, do tipo “se você não vier agora me ver, eu me mato”!
-Pode deixar, mas porra, toda vez que você vai ao Mineiro o mala do Alexandre aparece! Não sei por que insiste em ir praí! Na boa, parece até que tá querendo encontrar com o cara!
-Bonita, isso não vem ao caso agora, ok? Me liga, que depois de escapar dele, a gente compra umas latinhas e vai pra sua casa, pode ser?
-Lógico!

Em 10 minutos, Clarinha, na maciota, começa a encenação:

-Acho que seu celular tá vibrando, Anita.
-Ih é! Gente, nem percebi.
-Não atende não! Que saco, deve ser esse povo do seu trabalho!
-Deixa eu ver. Ih, é a Fê.
-Então atende, né? Posso pedir mais uma?

Em uníssono, Anita (já com o aparelho no ouvido) e Alexandre, concordam:

-Pede!

Clarinha só levanta o dedo indicador, num gesto universal indicativo de que a cerveja precisa ser reposta na mesa.

Nisso, Fernanda, que teve de deixar seu filmezinho lavagem cerebral de lado pra participar do joguinho da amiga, cumpre com o combinado de tirá-la daquela situação. Sem, é claro, perder a chance de dar aquela sacaneada básica:

-E aí, Anita, tô ligando na hora combinada, viu?
-Oi, Fêzinha, que que mandas, amiga?
-Você sabe o que eu mando, vaca! Faz cara de sofredora agora, pra ver se convence alguém!
-Jura? Mas quando foi isso?
-Quando foi o que, sua falsa? Se vira, inventa uma história decente!
-Não, querida, não chora, que ele não vale isso tudo.
-Gente, você é uma atrizinha de quinta, hein, vou te falar!
-Ai, amiga, se você quiser que eu vá praí agora, eu vou!
-Vem, e vê se traz uma vodca decente dessa vez!
-Não, não vai atrapalhar nada, tô tomando uma aqui com a Clarinha. O Alexandre até apareceu, acredita?
-Que coincidência né, menina? Manda um beijo presse péla-saco!
-Não, querida, eles vão entender, fica tranqüila! Em meia hora tô aí, é só o tempo de fechar a conta e deixar Clarinha em casa, tá bem? Ou você quer que ela vá também?

Logo depois, desliga e, com o semblante compassivo, dá sua grande fala:

-Fernanda mandou um beijo pra vocês. Gente, desculpa, mas preciso ir, ela acabou de terminar com o namorado, tá péssima. Vou comprar uma vodka e dar uma assistência até ela vomitar e capotar, saca?

Clarinha, em busca do Oscar de coadjuvante, completa:

-Será que ela quer me ver também?
-Não amiga, infelizmente, essa eu que vou ter que segurar sozinha...
-Força, então, vai dar tudo certo!
-Quer uma carona?
-Quero.

Alexandre, num misto de entendimento e perplexidade, leva as moças até o carro. Como candidato à vaga de péla-saco do século, dá sua cartada final:

-Se você quiser, Anita, eu posso levar Clarinha em casa, pra você chegar logo na Fê. Nessas horas, quanto mais rápido se age, melhor, né? Vai que ela faz alguma besteira...

-Precisa não, querido, mas obrigada pela força, viu?

Alexandre voltou pro bar, provavelmente à caça de alguma ex-namorada pra impregnar antes de ir pra casa assistir ao Fantástico e bater uma punhetinha pensando em Anita.

Já as meninas, foram encontrar com a Fê, pra beber mais, falar mal dos homens e tentar entender porque moças como elas não gostam de rapazes como Alexandre, sempre dispostos a dar carona, a pegar casacos no carro e a pagar a conta.

Para moços assim, estavam sempre fora da área de cobertura.

Ou desligadas.