sábado, 29 de agosto de 2009

Quilometragens

-Ai, amiga, tô sofrendo...
-Quer que eu desça pra comprar leite condensado?
-Quê isso?!
-Tô só querendo ajudar...
-Ai, por que os homens bons moram longe?
-Porque no dia que começarem a divulgar que Rio de Janeiro é cidade maravilhosa só pra turista o terceiro mundo vai explodir!
-Hahahahahahaha! E quem tiver de sapato não sobra!
-Não pode sobrar!
-Eu tenho várias amigas que só trabalham com produto estrangeiro.
-Complicado é o imposto...
-Hoje em dia importar não é tão difícil.
-Parece até que a gente tá falando de economia!
-Não deixa de ser uma análise do produto interno bruto...
-Hahahahahahaha!
-Mas, fora de brincadeira, eu meio que vivo repetindo esse padrão de homens de fora, né?
-Vive sim, mas às vezes eu fico achando que você tá melhor que muita gente que mora a vinte minutos da casa do namorado.
-Besta!
-Tô falando sério, não é só pra te consolar, não.
-Sei...
-O Alexei é um cara mais presente na sua vida do que imagina sua vã filosofia...
-Queria estar com ele agora e não posso, você acha que isso é fácil?
-Não, não é.
-Só pra te dar uma idéia: quantas vezes você me viu chorar na vida?
-Umas três.
-Pois então, hoje voltando do aeroporto foi a quarta.
-Cara, vou fazer um brigadeiro pra você!

Enquanto misturavam o leite condensado no chocolate em pó, Alexei ligou pra dizer que tinha chegado bem em Frankfurt e que tinha deixado uma surpresa embaixo da cama.

Como criança no natal, destroçou o embrulho e não acreditou quando viu o filhotinho de labrador com um bilhete escrito “cuida de mim” amarrado no pescoço.

A amiga, que já sabia de tudo, abriu um sorriso de quem acabou de fazer limpeza de tártaro e terminou de fazer o brigadeiro.

Porque, em se tratando de amor sincero, quilômetros não são a melhor forma de medir distâncias.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Ecologia às avessas

-Fui deixar um scrap pra você e num te achei...
-Saí do orkut, amiga.
-Quê isso, gata?
-Do facebook também.
-Jura? Logo você, a mais conectada. Aliás, pensando bem, nunca mais te vi no msn, achei até que você tinha me bloqueado...
-Hahahahahahaha! É que tenho entrado pouco mesmo.
-Menina, tô bege!
-Além do mais, bloquear alguém é caído, vai...
-Olha, eu já pensei assim, mas hoje em dia acho que existem situações e situações. Se a comunicação online não tá legal, pra quê insistir?
-Entendi, mas fica fria que não te bloqueei nada, viu? É que, sei lá, eu tava ficando meio improdutiva, meio noiada e o que é pior, meio gordinha.
-Você não tá gorda nada...
-Não tô, fato, mas também não paro mais o trânsito, como nos meus tempos de bailarina...
-Ah, amiga, naquela época você era virgem, tem saudade disso também?
-Nãããããooooooo!
-Ah, bem!
-Mas, voltando aos internetismos, nem tudo está perdido, continuo postando no fotolog.
-Aliás, vi a foto do por-do-sol, lindíssima por sinal. Amiga, você só se supera...
-Tirei na quarta.
-Foi à praia no meio da semana, é?
-Pois é, menina, comprei uma bike e agora, sempre que dá uma brecha, dou um pulo em Ipanema. Ontem, com aquele calor, dei até uma nadadinha, acredita?
-Agora eu fiquei pretérita!
-Perdi dois quilos já.
-Arrasou no recreio!
-Num é?
-Mas você vai de capacete, né?
-Igual a Lu Patinadora: Lá - Lé - Li - Ló - Lu Patinadora! Lembra disso?
-Hahahahahahaha! Claro que lembro! Mas, olha, não fica falando essas coisas por aí não, que esse tipo de piadinha denuncia a idade, bela.
-Tudo certo com minha idade, baby, foda mesmo vai ser quando a bunda começar a cair.
-Vaca!
-Já fui muito rabuda, sabe assim? E as vantagens de um rabão são incríveis...
-Você não existe!
-Mas uma hora a gente precisa se desapegar desses valores, né? A gravidade e a morte são as únicas certezas da vida.
-Hahahahahahaha!
-Mas num é?
-Aqui, me diga: como é que vai ser ficar sem ver o que as pessoas postam, sem saber o que tá acontecendo? Você vai ficar desatualizada, baby!
-Vou dar de démodé, então, tá bom pra você?
-Daqui a pouco tá sem celular...
-Deixa de ser dramática, nega!
-Vai meditar e parar de comer carne também?
-Meditar é maravilhoso, você devia experimentar, ao invés de falar sem saber...
-Tá, mas e hoje, qual vai ser?
-Tenho uma conferência no skype até umas onze, depois tô liberada. Te mando uma mensagem assim que acabar, pode ser?

É claro que podia ser.

Porque coisas de verdade são à prova de tecnologia.

E, numa espécie de ecologia às avessas, não-biodegradáveis.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Dicas práticas pra não achar que o gatinho está a fim de você quando ele só quer ser seu brother

Como sabiamente canta Zeca Baleiro, o maior desejo da boca é o beijo. Daí, por conta disso, vez por outra, meninas tomam como gatinhos em potencial moços que até têm tesão nelas e adoram estar por perto, mas, definitivamente, as veem como brothers. A partir disso, é criada uma pseudo-relação, pseudo no sentido da falta de confluência e fluidez, mesmo quando ambas as partes julgam ter sido claras sobre as intenções que as movem. Acontece. Se enganar faz parte da vida. Enganos, inclusive, podem ser nossos amigos. Com o tempo, se bem aproveitados, passam a compor uma espécie de anti-cartilha do cotidiano.

Assim sendo, segue mais uma lista de dicas práticas para evitar que vocês, meninas, gastem energia com o que não flui, e para que vocês, meninos, fiquem mais atentos às feminices.

Capítulo primeiro: do standby

-Vocês vão sair de novo finalmente?
-Parece que sim.
-Como assim, parece?
-É que não marcamos exatamente.
-Tão em dúvida de onde ir?
-Não, já escolhemos um local.
-Sei...
-É que ele me deixou em standby, disse que é melhor marcar só no dia mesmo, que daí não rola de termos de desmarcar, caso ele não consiga se desvencilhar do trampo e tal.
-Porra, amiga, standby é coisa pra aparelho de dvd!
-É que a vida dele é uma loucura, não tem horário pra nada. Pra você ter uma ideia, tem dias que ele sai de casa às quatro da manhã porque precisa filmar o sol nascendo, acredita?
-Há quanto tempo você tá em standby, nega?
-Há algumas semanas.
-Já reparou que se você deixar o dvd parado por mais de meia hora ele desarma?
-Que analogia besta, amiga...
-Não é não! Uma coisa é deixar um encontro pré-combinado, tipo “vamos se ver na sexta, mas te dou aquela ligadinha confirmando no dia”. Isso é mostrar interesse e consideração pela dama, sem deixar de levar em conta os imprevistos da vida. Outra coisa é deixar pra te convidar só no dia, como se você estivesse à disposição full time.
-...
-De repente ele te vê como brother.
-Será?
-Acho que sim.
-Pensando bem, isso rola direto entre nós duas e é mó normal, né?
-Sim, nós podemos nos deixar em standby, temos anos de brodagem nas costas!
-Mas isso rolar com o gatinho é caído, né?
-Eu não acho bacana, mas se você não se importa, tranquilo também...

Dica prática: se o moço não consegue te encaixar na agenda dele, talvez seja a hora de sair do standby e dar play em aparelhos outros. Ou de outros, você é quem sabe. Só não vale é se acomodar, que isso não é posição digna pruma gatinha.

Capítulo segundo: das “amigas”

-Você não vai acreditar.
-Ai, Jesus, fala.
-Ontem encontrei de novo com o tal carinha que te falei, lembra?
-O que você ficou anteontem?
-Esse mesmo.
-Sim e aí?
-E aí que ele não olhava direito na minha cara, sabe assim “sou muito tímido”?
-Mas pra dormir junto pelado não teve timidez, né?
-Nenhuma.
-Ai, que preguiça...
-Espera que tem mais.
-Aff...
-Chegou uma amiga minha e simplesmente se pendurou no pescoço dele, tipo cachecol, sabe assim?
-Você tem umas amigas também, hein, vou te contar!
-Foda!
-Mas ele ficou com ela na sua frente?
-Não, mas a sensação que eu tive era de que teria rolado se eu não estivesse por ali, sabe assim?
-Sei.
-Incrível esse tipo de situação, né?
-É, baby, de repente ele te vê como brother.
-Será?
-Brother é assim: fica contigo, com sua amiga, com sua irmã, tudo na mesma semana, esquema procriação em cativeiro.
-Hahahahahahahaha! Só você pra me fazer rir, amiga.
-Tem que rir, filha, e, da próxima vez que encontrá-lo, dá um jeito de cantar no ouvidinho dele assim: “Take it easy my brother Charlie, take it easy meu irmão de cor, ê, ô”.
-Hahahahahahaha! E ele é negão!
-Do olho verde, tô ligada, esse é o tipo de informação que não esqueço, gata.

Dica prática: se ficou com o gatinho e teve uma noite excelente de miscigenação, fique atenta à atitude dele com suas amigas quando encontrá-lo novamente. Se a simpatia e a permissividade forem excessivas, ligue seu detector para brothers e dê um jeito de receber um telefonema urgente requisitando sua retirada imediata do local, pois situações como essa não precisam de cenas do próximo capitulo.

Capítulo terceiro: da necessidade de mencionar outra mulher que não a mãe, a irmã ou a tia-avó numa conversa

-E aí, foi legal o encontro?
-Foi sim, ele é figura.
-Legal!
-É...
-É o quê?
-É legal porque o silêncio não incomoda, sabe assim?
-Sei, isso é bem gostoso.
-É sim.
-Mas e a química prática? Funcionou?
-Ele é bem suave.
-Você curte, né?
-Sim.
-Tá, mas o que se passa, então, filha?
-Nada.
-Conheço essa sua carinha de ponto de interrogação.
-Boba...
-Anda!
-Ah, nem é nada de mais, mas de vez em quando, não sempre, ele fala de outras mulheres, sabe?
-Hummm.
-E eu não consigo meter um: “Ah, é? Poxa, que legal!”.
-Nem é o caso, o ideal é mudar de assunto, não?
-É, mas sei lá, não curto.
-Nenhuma mulher curte. Fato.
-Será? Acho que tem mulher que não liga.
-Que não liga não existe. Existe mulher que entende isso como insegurança de macho e simplesmente desapega.
-Mas por que você acha que é insegurança?
-Não sei se é insegurança exatamente a palavra, mas é uma coisa tipo “tá vendo como sou desejado?”
-Ah, não, não posso acreditar nisso!
-Você pode até não acreditar, cada um acredita no que prefere, né não?
-Besta!
-Quer ver uma coisa? Você fala de outros caras pra ele?
-Lógico que não!
-Tá vendo? E por que você não fala?
-Porque não acho que isso seja assunto.
-E por que você acha que isso não é assunto?
-Porque não preciso me explanar pra ele, essas coisas eu deixo pra falar contigo, que com a gente rola brodagem pra isso.
-De repente ele te vê como brother.
-Será?
-Acho que sim.
-Cara, ele não tira o olho dos meus peitos.
-Querida, seus peitos são fenomenais, nem seu terapeuta deve tirar o olho deles.
-Minha terapeuta é mulher e você sabe disso, sua louca!
-Tá, mas você entendeu a semântica, né?
-Sim, sim, mas é que ele parece tão interessado...
-Em ser teu brother!
-É, né?
-É, flor, deixa quieto, que essas paradas tão rolando direto, são os ardis da pós-modernidade.
-Sempre ela...

Dica prática: se está conhecendo um moço, fique atenta à frequência com que ele cita outras mulheres no meio dos papos de vocês, porque isso, mesmo numa história com química sexual e intelectual interessantes, é sinal de que ele quer te comer e, ao mesmo tempo, ser teu brother. Se pra você isso é satisfatório, tanto melhor, mas, se você não sai bem nessa foto, não insista, porque essas coisas não costumam mudar.

Capítulo quarto: da confusão entre saudade e vício

-Menina, hoje me deu uma saudade do figura...
-Não é saudade, filha, é vício.
-Será?
-Óbvio, eu morro de saudade do meu maço de Marlboro.
-Falando nisso, hoje fazem três dias que eu não fumo.
-Mas você num foi numa festa ontem?
-Fui.
-Bebeu?
-Todas.
-E não fumou?
-Não.
-Nem varejo?
-Não.
-Nem traguinho amigo?
-Não.
-Tá explicado!
-O quê?
-A saudade do figura!
-Como?
-Natural, neguinha, você se privou de um vício, daí se lembrou de outro.
-Será?
-Claro, gata.
-Estranho isso, né?
-Estranho nada, a gente se acostuma com as pessoas, acontece. E acontece também de num belo dia você se olhar no espelho e pensar: “poxa, acho que de repente esse figura me vê como brother”.
-Foi meio isso mesmo que rolou.

Dica prática: se conseguiu vislumbrar que determinado moço te vê como brother e que, ainda assim, você meio que se acostumou com ele, pois ele é um querido e coisa e tal, aceite a situação, mude o foco e siga em frente numa boa, lembrando sempre que com homem é que nem com cigarro: as primeiras setenta e duas horas de abstinência são as piores. Depois a tendência é melhorar.

Afinal de contas, é prudente tentar enxergar o limite antes de se deparar de cara com ele.

Porque o mais importante é sermos brothers de nós mesmos.

Pra desenvolver a incrível habilidade de aceitar a vida do jeitinho que ela é: complicada e perfeitinha.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Bobagem (parte 2)

Buscar na satisfação pura e simples pela mais sublime felicidade é desacreditar no poder do fim do túnel

É colocar em xeque o ponto de mutação

É coisa pra se fazer somente de porre

Mas nunca na frente do espelho

sábado, 15 de agosto de 2009

Dia e noite

-Hoje é dia dos solteiros.
-E de Nossa Senhora da Glória!
-E o que Nossa senhora da Glória fez?
-Ela é mãe de Jesus.
-Peraí, mas a mãe de Jesus não é Maria?
-Até onde eu sei, que fui só até o catecismo, Nossa Senhora é uma só, mas, como ela apareceu em vários lugares, tem vários nomes: Nossa Senhora de Lourdes apareceu em Lourdes, Nossa Senhora de Fátima apareceu em Fátima e por aí vai.
-Faz sentido então, porque Maria foi mãe solteira.
-Olha a blasfêmia! Ela era casada com José, não era solteira, era virgem!
-Ah, desculpa, achei que seria uma boa analogia.
-Não foi não, com essas coisas não se brinca!
-Tá, quer dizer então que hoje tem festa no Outeiro da Glória?
-Festança!
-Deve estar cheio de solteiro por lá!
-Hahahahahahahahaha!
-Ah, cara, já me ligaram várias amigas arrasadas, falando que dia de solteiro não se comemora, que é uma data pra colocar o rabo entre as pernas e se lamentar, mas eu acho isso uma falácia.
-Falácia não sei, mas que um falo caía bem, ah, caía.
-Podre você!
-Pensa comigo: todo casado já foi solteiro um dia, o que significa que os solteiros são casados em potencial, como larvas que um dia serão borboletas.
-Ainda tem mais: muito solteiro de hoje já foi casado um dia, o que significa que, de forma cruel mas verdadeira, alguns casados também são solteiros em potencial...
-Mas esse pensamento é destrutivo, porque as pessoas se casam pensando que vai ser pra sempre.
-Será mesmo?
-Acho que sim, amiga.
-Do jeito que tá tudo tão descartável...
-Existem casos e casos, não se pode generalizar.
-O fato é que, quanto mais entre as pernas estiver o rabo, menos erguida se está a cabeça. E, segundo minha mãe, quem muito se abaixa alguma coisa aparece.
-Boa!

Continuaram transitando pelo óbvio, como quem dá voltas em torno do próprio rabo.

Felizes por serem solteiras mas não solitárias.

Por terem dias de sol, chopp gelado, festas soul e motéis com banheira de hidromassagem.

Pois, se o dia é dos solteiros, nada impede que a noite seja de glória.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Chat(eação)

Eu orkuto
Tu twittas
Ele bloga

Nós skypeamos
Vós myspaceás
Eles chat(eiam)

Seguem achando que se comunicam
Sem olho-no-olho
Sem tom e sem voz

Numa anti-intimidade confusamente pós-moderna
E estranhamente desumana.

domingo, 9 de agosto de 2009

Entre limões e sonhos


Encontrei Tia Lúcia na rua ontem.

-Oi, filhinha, tudo bem?
-Tudo, tia, e as meninas, vão bem?
-Tudo ótimo, cada uma num canto do mundo, aquela coisa.
-E o tio?
-Tá bem, aposentado, seguimos firmes, unidos.

Antes que eu pudesse emendar algum outro assunto, ela veio com a história de sempre.

-Não posso te ver que me lembro de você pequenininha lá em casa, contando uma piada atrás da outra, o centro das atenções.
-Sempre fui aparecida, né?
-Todas as meninas iam cheias de lacinho no cabelo, mil balangandãs e você com um shortinho, um tenizinho e uma camisetinha sem manga.

Tia Lúcia é uma mulher fina, sempre foi. Não mencionou que meu cabelo era uma ode ao Jackson Five e nem que meu shortinho era herança dos irmãos mais velhos.

-Bons tempos, né, minha queridinha...

Concordei por concordar, mas acho que eram mesmo.

Foi com Tia Lúcia que aprendi a gostar dos domingos, pois ela fazia questão de me incluir nos programas culturais infantis da família, sempre encerrados com sonho de doce-de-leite na padaria da esquina de casa.

Como uma lembrança puxa a outra, me veio a imagem de mamãe agora.

-Polianinha, querida, larga esse limão!
-Eu gosto dele, ele é meu amigo.
-Sim, filhinha, mas você já chupou ele todo, dá pra mamãe jogar fora, dá?

Passei a infância assim.

Engraçado que, de certo modo, continuo a mesma:

Uma cabeluda aparecida, entre limões e sonhos.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Superfície

Estar no páreo sem saber exatamente do quê

Ter medo da própria coragem

Colocar colete salva-vida em terra firme

Andar descalço em mármore de Carrara

Usar mertiolate indolor

Preferir o certo ao duvidoso

Trepar apenas com a buceta

Desviar do assunto

Querer sem vontade

Tomar chamagne só porque é chic

Ser feliz em tese

Como vitórias-régias que nem se percebem invejosas de tudo que é profundo

E que nunca saem pra pescar sutilezas

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Coisas de Clarice

Trechos de 'Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres', de Clarice Lispector


Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteiro, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, esperarei quanto tempo for preciso.

Nós ainda somos moços, podemos perder algum tempo sem perder a vida inteira. Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro.

Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada.

Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível.

Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa.

Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gafe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia. Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah, milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa desconhecida que é sentir-se feliz e preferem a mediocridade.

Você precisa andar de cabeça levantada, você tem que sofrer porque você é diferente dos outros.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Impressões

Assistir a uma sessão de curtas falando sobre a longa dor que é viver

Aceitar que cinema é coisa de maluco que vive a se alongar na tentativa de encurtar a dor

Ou de dividi-la em vinte e quatro quadros por segundo

Pra ver se imprime uma marca no mundo

Que não seja a da maldade

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Quem dera a segunda pudesse contar ao domingo o quão gentil sábado havia sido com ela

Impossível

Domingo estava bêbado como uma porta

Esperando há horas pela solidão

Que chega só na quarta feira

sábado, 1 de agosto de 2009

Sábado à tarde

Atender interfone ofegante

Assumir o controle sem piloto automático

Usar renda preta como arma branca

Ajoelhar sem rezar

Endurecer pau com a boca

Apanhar sem reclamar

Degustar o próprio mel lambuzado na língua que lhe beija

Suar pelo tampo da cabeça

Inventar desculpas lânguidas pros hematomas

Comprar permanganato

Arrepiar-se só de lembrar

Como uma gueixa pós-moderna

Que bebe na fonte da saudade do que ainda nem viu

E acaba, inevitavelmente, molhada.