segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Pequenina da pernoca grossa

Ontem vi essa foto no orkut de uma amiga e pirei: eu sou a branquela do meio, a magrela da pernoca grossa e, junto com as outras meninas de maiô vermelho, integrava a equipe feminina de natação do América Futebol Clube. Apesar de parecer fragilzinha, eu nadava borboleta, treinava todo santo dia, competia nos finais de semana e não tinha nada que se assemelhasse a uma vida social. O que era até bom, já que, sem peito nem bunda nem pentelho, não era mesmo convidada pra quase nenhuma farra da galera da escola. E, quando por alguma eventualidade, acabava indo parar numa festinha, me sentia sempre inadequada, mal-vestida ou as duas coisas. Diversão pra mim era estudar e escrever no diário. Mas o que mantinha mesmo minha sanidade era treinar. Se o dia tinha sido duro na escola, caía na piscina e nadava ainda melhor. Assim, nunca se abateu sobre mim a sensação de completa infelicidade. O bom da natação era que dava pra chorar durante o treino todinho sem que ninguém reparasse. Nem Silvio, meu técnico e fã declarado, conseguia sacar. E olha que ele foi o primeiro homem a me observar ostensivamente. Apesar das piadas sem graça que costumava contar pra nos distrair, sabia ser duro e impor respeito sem precisar levantar a voz nem fazer grosseria. Pelo contrário, quando tava puto, falava até mais baixo. Hoje vejo o quanto ele foi o grande responsável pelo fato deu nunca ter sentido pena de mim mesma. Não por me favorecer em detrimento das outras atletas (coisa que ele não queria e nem podia fazer), mas por levar fé em mim e na minha coragem de ter medo. Num determinado dia, porém, eu, muito de saco cheio dessa vida de treinamentos, resolvi que era a hora de desertar:

-Não dá mais, cansei de contar ladrilho. Quero ter tempo pra ler um livro, pra ir ao cinema, pra não fazer nada.

Deu pra ver o castanho da decepção naqueles olhos. Pela primeira vez percebi o quanto eu era uma promessa que se partia em pedaços. Parecia o fim de um namoro. E, guardadas as devidas proporções, era mesmo. Incrédulo, ele ainda tentou me dissuadir:

-Nós plantamos tanta coisa e justamente agora, na hora de colher o fruto do trabalho, você cai fora. Tem noção de que ano que vem é quando você tem chance de bater os índices mais importantes?

Fui, sem dúvida, uma decepção na vida dele, mas não tinha realmente mais saco. Queria desbravar outros mares, já que tinha perdido o medo de me afogar.

Anos depois, nos encontramos no parque aquático Júlio De Lamare, quando eu já era estudante de Educação Física da UERJ. Lembro que minha espinha gelou de medo dele me achar fora de forma e decadente. Devo ter feito uma cara de tanto pavor que ele, elegantemente, me tranqüilizou:

-Que nada, você ficou uma moça tão bonita! Eu sempre soube que isso ia acontecer, mesmo quando você ainda era aquela magrelinha descabelada.

Sílvio sempre teve essa capacidade de me botar pra cima, de me fazer sentir importante. Uma vez, num dos treinos que tínhamos às 7 da matina de domingo, ele disse que não esperava que nós seguíssemos com o esporte na vida adulta, porque era realmente complicado conciliar os treinos com trabalho e estudos. Mas esperava, sim, que aquela experiência de disciplina e de esforço nos marcasse por toda a vida, nos nossos objetivos futuros. Estava mais preocupado em formar pessoas do que atletas. Acho que no fundo foi pelo Sílvio que fui estudar Educação Física, por saber que foi o esporte que me tirou das trevas da exclusão e me catapultou pruma vida inteira de busca pela superação. Hoje acho que não cruzo nem 25 metros de borboleta, mas sei que, ainda assim, posso ir onde eu quiser. E essa certeza quem ajudou a plantar em mim foi ele.

Olhando a foto de novo, vejo que eu nem era tão feia assim como me achava. Na real, era até engraçadinha. Pensando bem, bobos dos meninos que não me davam bola na escola e das meninas que não me convidavam pras festinhas. Perderam, porque nessa época eu já era eu. Tanto que já morava em mim a esperança de ser feliz, de ser amada, de botar o bloco na rua e de ligar o foda-se. Ali, naquela magrela sem pentelho, já habitava a artista em que me transformei. Nem eu mesma consigo acreditar que dentro daquele maiô largo já pulsava um imenso amor pelas palavras e uma vontade delirante de contar histórias.

Silvio nem sabe que não trabalho com educação física desde que me formei, que virei cineasta, que tenho hérnia de disco, que faço pilates, que amo caminhar, que nado na praia sempre que posso e que tenho pavor de cheiro de cloro. Vai ver nem se lembra mais de mim. Mas eu nunca vou me esquecer dele e de seu bigodinho à la Rodolfo Valentino. Hoje sei que mora na Alemanha, é casado e tem pelo menos um filho.

Aposto que aprendeu a fazer piadas sem graça também em alemão, que volta e meia tira uma magrela das trevas da exclusão, que come strudell todo dia e que nem faz idéia da saudade que sinto dele.



sábado, 6 de dezembro de 2008

A cereja do sundae

Fabrícia não curte tomar a iniciativa. Mais por autopreservação do que por machismo, diga-se de passagem:

-Mulheres muito cheias de opinião não devem partir pra dentro. Melhor deixar essa tarefa pras mais quietinhas...

Como todo vaticínio tem sempre uma exceção, nesse caso não podia ser diferente:

-Às vezes, mesmo sem querer, acabo ouvindo a voz da minha buceta.

Fabrícia enche a boca pra falar de buceta. Nada de xereca, vagina, perseguida, vulva, xana, flor do lácio, piriquita, boca de cabelo, perereca, xoxota. Pra ela buceta é e sempre será uma palavra de lirismo rústico. Uma poesia, por si só, concreta.

Pois bem. Dia desses, na internet, encontrou um amiguinho virtual que costuma vez por outra acompanhá-la em aulas noturnas de intra-aeróbica de alto impacto e longa duração, seguidas de repouso e café da manhã, exatamente nessa ordem.

-Ele apresenta uma boa performance e, diferentemente dos outros, não se importa com minhas constantes viagens. Pelo menos é o que me diz...

Baseada nessa lógica, chamou o moço prum encontro. Antes tivesse ficado quieta, pra não ter que ouvir a resposta mais desagradável que existe:

-Poxa, estou super ocupado, tenho uma prova sinistra daqui a um mês e não quero me desfocar.

Na hora ficou puta. Fala sério que o bofe vai ficar um mês sem! Se ela não fica, imagina ele! Na hora mandou um: “Vá tomar no cu que vou acreditar nessa sua lorota! Por que não me diz logo que não está interessado? Seria mais honesto de sua parte!”.

Diante de tão inflamada reação, o mancebo sugeriu uma opção B:

-Podemos dar uma rapidinha no almoço ou no final de semana, depois que eu terminar de estudar...

Como rapidinha entende-se dizer oi, fuder e dizer tchau, tais como máquinas mortíferas, sem ninguém ter que morrer depois, naturalmente. Aquilo para Fabrícia era o fim. Apesar de falar um monte de baixaria, fazer um monte de baixaria, ser assinante de um guia de motéis e curtir um pompouarismo básico, nunca conseguiu fazer a linha biscate:

-Quê isso! Vou fingir que não entendi a proposta!

Mas, apesar da aparente aridez afetiva, o menino é até gente boa, bem-humorado, com potencial para virar um personal fucker satisfatório no futuro, desses que te atendem uma vez por semana sem regular a mixaria. Do jeito que a coisa anda, mais vale um personal na mão do que um protótipo de namorado confuso voando. Tudo bem que existe o risco de envolvimento. Mas vida sem risco não é vida, é plano de saúde sem carência.

O fato é que Fabrícia sabe, por experiência própria, que quando os pequenos lábios falam, todo o resto se cala. Pensando nisso, resolveu manter o charme e fingir que não era com ela. Pescou no celular as chamadas não-atendidas mais interessantes e seguiu com seus freelas. Não sem antes, é claro, dar aquela alfinetadinha básica:

-Quero ver se essas biscateiras que vão se sujeitar a isso são tão tesudas como eu...

A bicha, além de vaidosa e tinhosa, sabia que, a seu modo, exercia um poder qualquer sobre aquele pau, da mesma forma que aquele pau batia-lhe o sino pequenino. Sabia também que ser mulher significava, entre outras coisas, entender que tudo nessa vida passa, inclusive cenas de bucetismo explícito em ambiente afetivo aparentemente árido.

O importante, no final das contas, era manter-se em cima do salto, porque somente do alto podemos ver melhor todas as possibilidades.

E, em tempos como os nossos, de indiferença crônica e generalizada, uma boa carta de clientes pode fazer toda a diferença.

Como a cereja faz no sundae.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

As testemunhas

Perguntada em uma coletiva do porquê fazer cinema, Cecília, curta-metragista de longa data, sem o menor constrangimento, disse:

-É pra conhecer meninos de outras partes do país quando viajo pelos festivais com meus filmes.

Diante do silêncio acachapante, resolveu complementar:

-Mas também estou aberta a meninos que moram no meu próprio Estado, naturalmente.

Como ninguém dizia nada e só o que se via eram olhares lânguidos, resolveu adotar uma postura mais globalizada:

-Meninos do mundo inteiro, ok? Não tenho preconceito de raça, cor ou credo. Quem me conhece, sabe do que falo.

Mesmo quem não a conhecia, sabia que dizia a verdade. Festival de cinema é legal pra rever velhos amigos, passear, fazer novos amigos e, por que não dizer, realizar intercâmbios sexuais. No meio disso tudo, é claro, existem as sessões, as oficinas, os debates. Importantíssimos, diga-se de passagem. Mas tudo, tudo que é feito, tem como objetivo final o bar, a biritolândia, as discussões inflamadas, as opiniões divergentes, o brinde ao cinema nacional, ao cinema estrangeiro, à vida, à cachaça, num caminho sem volta rumo às festinhas privês nos quartos dos hotéis e aos banhos de piscina com ou sem roupa, à escolha do cliente. Resumindo: quem nunca se deu bem num festival, ou não tentou, ou simplesmente não estava interessado.

Só que Cecília não precisava explanar todos os curta-metragistas. Inclusive porque muita gente vai pra essas viagens acompanhado, numas de curtir uma luazinha-de-mel fora de época, tipo micareta intra-aeróbica, pra dar aquela chacoalhada na relação.

O fato foi que a moça falou demais. Podia ter dito somente que o importante era o intercâmbio e pronto, já estaria subentendido ao que se referia. Mas agora, com o milk-shake derramado no meio da sala de imprensa, só restava uma coisa a fazer: apelar pro exotismo comportamental corriqueiramente atribuído a artistas como ela.

-Gente, vocês acham mesmo que estou falando sério? Eu sou uma mulher comprometida. Além de namorado, tenho quatro cunhadas, sabem lá o que é isso?

O pessoal sabia. Aliás, jornalista, de uma maneira geral, contrai matrimônio e constrói, desde muito cedo (na maior parte das vezes ainda dentro da escola de Comunicação), a idéia de que o pessoal de cinema é tudo louco depravado sempre pronto pruma suruba. Assim, quando uma cineasta fala de laços afetivos estáveis, mesmo após declarações iniciais duvidosas, a comoção é grande.

Sentindo que sua tacada tinha sido certeira, aproveitou pra arrematar com chave de ouro:

-Aliás, a gente vai demorar muito? Preciso saber se meu gatinho vai poder me buscar no aeroporto amanhã, combinei de ligar pra ele daqui a pouco. Mas antes vamos concluir a pergunta, que é melhor pra todo mundo. Vocês querem saber por que faço cinema, não é isso? Olha, a princípio pra expressar minha visão de mundo e, depois, pra discuti-la em fóruns privilegiados, como nos debates desse festival ou mesmo em coletivas edificantes como essa.

Pronto. Ficou o dito pelo não-dito.

Até mesmo porque estava quente, tinha festa na beira da piscina e a noite prometia emoções subaquáticas das boas.

E é sabido que, em meio líquido, as únicas testemunhas sólidas são as osculares.





sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Dia de musa

A internet tem coisas que até a internet duvida. Como Fábio, um jornalista que um dia veio aqui no blog e ficou amarradão. Não deu um mês e a gente já tava mostrando textos um pro outro, não só os nossos, mas os de outras pessoas também. Assim, naturalmente, começamos a conversar sobre as coisas da vida, entendendo-se como coisas da vida o sexo, o trabalho e as relações inter-pessoais, exatamente nessa ordem. A real é que o Fábio mora em Blumenau e nos falamos volta e meia pelo msn. Nos escutamos e tecemos comentários. Somos meio que consultores para assuntos do sexo oposto um do outro e, uma das coisas que eu sempre disse é que todo garoto novo que nem ele, com vinte e poucos anos, merece ser comido por uma mulher mais velha, de trinta e tal, que nem eu. Minha tese gira em torno do fato de que a vantagem dos homens mais novos é a carga de neurose reduzida. Já a das mulheres mais velhas, é aliar o fetiche da balzaca à possibilidade de algo além do sexo burocrático e das conversas pra boi dormir. Mas, pra isso, há de se ter coragem, porque dá medo encarar um mulherão que já teve vários machos antes. Explico que, nesse tipo de relação, a linha do tempo, uma hora ou outra, se mostra implacável. É mais ou menos assim: enquanto o garoto batia sua primeira punhetinha e o máximo que fazia era arrasar no recreio, a mulher já esbanjava na prorrogação, fazendo (e levando) gol atrás de gol. Fábio acha legal meu discurso, apóia minha preferência, acha até que seria bom seguir meu conselho e arrumar um mulherão assim, mas ele não curte, fazer o quê? Ele gosta de garotinhas. E ponto final.
Acontece que o rapaz é escritor e já vinha me dizendo que tava bolando uns contos em que eu seria uma das personagens. Daí ontem me veio com esse texto. Além de alegrar meu dia (que chato ser musa...), ele escreveu pra todas as mulheres fortes e pra todos os garotos novos que as admiram. Um texto sobre encantamento, nudez e fetiche. Para comer com os olhos.

Sirvam-se à vontade:
http://fabioricardo.wordpress.com/2008/10/30/o-principe-encantado-ou-nao/

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Anônimos

-Como assim colocar o despertador pra meia hora antes só pra dar uma rapidinha?
-Ué, não é todo dia que podemos ir trabalhar tão relaxados, não é mesmo?
-Cara, mas isso eu nunca vi, sinceramente.
-Bem-vinda ao mundo dos tarados anônimos!
-Hahahahahahaha.
-Se eu der mole, rola até videozinho, esquema fetiche.
-Vem cá, ele é tarado, mas é normal, né?
-Sim, ele é um cara que marca as paradas e comparece com animação, não tem nada de errado nisso, tem?
-Claro que não, mas vocês tipo conversam?
-Lógico, né? De vez em quando ele reclama das minhas unhadas e me chama de mulherzinha.
-Não tô falando desse tipo de conversa!
-Tá falando do quê, então? Astrologia? Culinária? Crise mundial?
-Não! Mas por exemplo, esse lance do despertador, foi uma coisa conversada?
-Foi, porque da outra vez ele já tinha mandado essa, que a gente podia ter acordado uns 20 minutos mais cedo, que era o tempo contado pruma rapidinha básica.
-Caralho, ele é metódico!
-Parece que sim.
-Parece?
-É, ele é metódico.
-Quem diria, você comendo um metódico, logo você, que só anda com os caóticos!
-Pô, mas eu não tenho nada contra o método.
-Tô vendo...E a rapidinha, é boa?
-Sim. Incrível como realmente chego no trabalho mais relaxada...
-Que coisa, hein!
-É.
-Vem cá, você não tá de 4 por esse moço não, né?
-Olha, sempre que encontro com ele fico de 4.
-Hahahahahahaha.
-É inevitável: ele manda, eu obedeço.
-Jesus amado...
-Ah, uma submissãozinha de leve não faz mal a ninguém, vai! Depois é só virar o jogo, que nem no judô.
-Por isso as manchas roxas!
-Exatamente. Olha, amiga, tenho que ir pro pilates, mas a gente se fala, tá?
-Beleza, bora marcar o bota-dentro do apê da Lia, ela descolou um cantinho lindo no Flamengo.
-Bora! Só marcar e me avisar. Ando arrasando quando o assunto é botar dentro...
-Lasciva!

Nem era hora do pilates, mas aquele papo tava começando a dar nervoso. Não tava a fim de entrar em maiores detalhes, porque conselho de amiga é até legal, mas nesse caso, o melhor era botar o bloco na rua.

Até mesmo porque atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu.

sábado, 18 de outubro de 2008

O bafo

-Tô fazendo Feng Shui mesmo!
-Mas você acha que precisa despachar o bofe assim tão radicalmente, nega?
-O cara é um musicoterapeuta durango kid!
-Tá, mas dá uma chance, ele pode ser legal, vai...
-Ele me perguntou se 12 reais era o preço da garrafa de uísque. Quase morreu quando falei que esse era o preço da dose que sempre peço! Fala sério!
-Putz, que sinistro.
-Isso no Lamas. Imagina se fosse num lugar mais chic!
-O pior não é ele achar caro e decidir não consumir...
-Porra, o pior é ele achar que a garrafa de uísque custa 12 reais, né, bela?
-Exatamente! Demonstra total falta de ambição.
-Péssimo isso, tô quase precisando de um uísque agora, às 3 da tarde.
-Duplo!
-Cowboy, pra descer ardendo!
-É, mas pensa assim: antes isso do que nada.
-Não, na boa, já vinha perdendo gradativamente o tesão nele. Outro dia no motel ficou reclamando na portaria que tinham cobrado uma camisinha a mais. Situação constrangedora, eu sem saber onde enfiar a cara...
-Que péssimo.
-Bizonho! Mas vamos falar de coisas boas: passei na prova do MBA em Marketing ambiental e reciclagem pró-ativa. Começo daqui a 2 semanas.
-Que linda, arrasou!
-Foda, né?
-Ai, parabéns, queridona. E aí, tá animada?
-Super, tá total na hora de investir em mim mesma.
-Lógico! Mas vai dar pra conciliar com seus freelas?
-Vai ter que dar. Quanto mais ocupada você tá, mais neguinho valoriza seu tempo.
-Isso é ótimo.
-Alguém tem que pagar meu uísque, né?
-Hahahahahahahahaha. Cruel!

E assim, afastada do clube da derrota e próxima dos executivos bem-na-fita, levou seu MBA regado a black label. O balanço final foram três desquitados: dois com disfunção erétil e um com ejaculação precoce. Pra quem reclamava do gatinho pleiteando desconto na porta do motel, a vida nem tinha evoluído tanto. Chegou a ter um pensamento retroativo: pelo menos o durango kid era duro do início ao fim.

Uma semana depois da formatura, seguindo os ditames da reciclagem pró-ativa, voltou pras sessões de musicoterapia.

A aposta agora era na partida de bafo, pois é fato que figurinha repetida não completa álbum.

domingo, 28 de setembro de 2008

Quinta-feira santa

Acordou submissa em plena quinta feira.

Lavou os cabelos e, já que estava debaixo d’água, aproveitou pra depilar a virilha.

Pegou o jornal, mas percebeu que estava sem paciência pra desgraça.

Pensou em ligar pra alguém, mas achou melhor deixar o telefone fora da jogada.

Quando já estava se acostumando ao tédio de seu interminável dia de trabalho, foi avisada que podia ir pra casa mais cedo.

Chegando em casa mais cedo, fez uma macarronada pra dois.

Como não apareceu ninguém, jantou só.

Já que jantou só, dispensou a sobremesa.

Sem companhia, resolveu cuidar da pele.

Passou hipoglós no rosto e desistiu de todo o resto.

Uma pena, pois em dias como esses, poderia facilmente ser dominada.

Mas todo mundo sabe que a todo tempo acontecem casos assim, de submissão em vão...

Foi dormir.

Quem sabe sexta não seria seu dia de sorte?

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Como deve ser

-E aí?
-E aí o que?
-Como foi?
-Como foi o que?
-Ahhhhhhhhhhhhh! Conta....
-Ai, gata, você já quer saber da trepada que dei há menos de 24 horas?
-Claro! Você é a única que me traz novidades nesse aspecto. Todas as minhas outras amigas são casadas e, naturalmente, não fodem como gostariam.
-Ou não gostam de como fodem...
-Você é do mal, guria!
-Nem, mas não resisti à piadinha infame.
-Não resistiu em mudar de assunto, que eu te conheço.
-Ai, preciso mesmo contar?
-Só pra mim, vai.
-Tá bem, o que você quer saber?
-Tudo.
-Pergunta.
-O pau? Satisfatório?
-Sim, um mediano standart.
-Grosso?
-Sim.
-Mesmo?
-Sim, daquele tipo que arde um cadinho quando entra, sabe?
-Hummmmm, delícia...
-De fato.
-Pegada?
-Interessante.
-Como assim?
-Suave com arroubos de intensidade.
-Nossa...
-Foi legal mesmo. Ainda por cima ele curte chupar, sabe?
-Confesso que esqueci o que é isso, Jaime tem nojo.
-Pois é, esse rapaz gosta muito...
-Que beleza, filha! E aí? Marcaram alguma coisa?
-Nem me atrevi a tocar no assunto.
-Como assim? É tão difícil achar um homem que encaixe bem, qual o problema de vocês se verem mais?
-Problema nenhum. Acontece que, se eu sugerir algo, naturalmente ele vai ficar naquela paranóia de que eu quero casar e ter três filhos, começando a produção mês que vem, quando eu parar com a pílula.
-Menina, que horror!
-Querida, os homens estão todos assim e acho que isso é um pouco culpa nossa...
-Como assim, culpa nossa?
-Nossa, das mulheres.
-Quê isso, amiga? Tanta Rose Marie Muraro pra nada...
-Não é isso, deixa eu explicar direito.
-...
-A culpa não é nossa, nossa, mas do papel que passamos a assumir no mundo em menos de 50 anos. Já reparou que estamos dominando? Natural que eles fiquem inseguros e defensivos, é muita mudança pra pouco espaço de tempo, entende?
-Que espaço de tempo o quê! Agora vamos ter que nos diminuir pros homens ficarem mais confortáveis em nos oferecer um sexo meia-boca?
-Se ainda fosse meia-boca, tava valendo, né, lindona?
-Porra, agora você tá nessa, né, nega? Só tripudiando...
-Ai, tô brincando com você, vai! Mas escuta aqui, o Jaime, hein? Que coisa! Eu se fosse você parava de fazer o jantar dele...
-Daí ele ia jantar fora todo dia, mas deixa o Jaime, que ele já tem o que merece.
-Vai dizer que você não chupa ele? Duvido! Você nunca pôde ver pau sem querer logo colocar na boca, ou você acha que eu não lembro do seu apelido dos tempos da facu?
-Pára com isso, que Jaime tá pra chegar!
-Ele devia ser penalizado!
-Tô te falando que ele já tem o que merece...
-O que é? Agora fiquei curiosa...
-Você não vai conseguir mudar de assunto. Quero saber mais do moço.
-Não tem mais nada pra saber.
-Fala.
-Ele fode bem, chupa bem, conversa sobre as coisas da vida depois do sexo e faz um ovo mexido bacana.
-Ovo mexido?
-É, piranha, ovo mexido, sim, com baguete!
-Baguete é fino demais!
-Não o baguete dele...
-Sei.
-Ai, amiga, sinceramente, não quero me apegar.
-Por que?
-Porque não é momento pra isso.
-Eu sei que você tá deslumbradinha com seu sucesso e com a chuva de homem que invadiu sua horta, mas pensa no futuro. Você quer ficar sozinha pra sempre?
-Mas eu não sou sozinha, eu tenho meus amigos, tenho meus amantes. Tenho também meus amigos-amantes.
-Sim, mas isso não aquece seu coração...
-Que mané coração aquecido o que!? Toda vez que me envolvo com alguém, fico dispersa, esperando telefone tocar, email chegar, menstruação chegar. É um stress, uma leseira, que me canso só de pensar.
-Você quem sabe...
-Pra que ter homem fixo? Pra ele parar de me comer, que nem Jaime fez com você?
-Fala baixo que ele tá pra chegar! E não exagera que também não é assim...
-Claro que é, querida, você vive triste, cercada de vibradores.
-É bom ter vibrador, vai.
-Claro que é, mas, por exemplo, o meu, tá cheio de poeira, há tempos que não preciso dele.
-Você tá numa boa fase, só isso.
-Eu sou dona das minhas fases, é diferente.
-Quero ver você dizer isso daqui a dez anos...
-Daqui a dez anos o mundo já deu muita volta. Não vou ficar parada esperando a liberdade sexual terminar de ser trancafiada e minha bunda definitivamente ceder à gravidade.
-Dramática...
-Nasci atriz, bela.

Depois de tão edificante conversa, uma foi prum encontro e a outra pra cozinha, cortar cebola pra salada do maridão. Ambas certas e erradas.

São até capazes de se ferir, mas nunca de se desrespeitar.

Sabem que estarão ali toda vez que a outra precisar, independente de quantos homens ou vibradores ocuparem suas camas, sofás e cozinhas.

Simplesmente amigas.

Como deve ser.

sábado, 6 de setembro de 2008

A conta

-Oi, Ana, quanto tempo!
-Oi, Debica, tudo bem?
-Sim, querida, você sumiu...
-Pois é...
-A última vez que te vi você tava traçando o cara mais lindo da festa.
-Nem me fale...
-Tá rolando? Vocês têm saído?
-Aconteceu uma parada surreal.
-O quê?
-Aquele dia a gente tava no maior romance, você viu né?
-Se vi! Você tava despertando a ira feminina no banheiro.
-Como assim?
-Tinham umas meninas falando de vocês.
-Falando o quê?
-Coisa de mina invejosa, que o moreno de blusa branca estava agarrando uma gorda descabelada.
-Gorda é sacanagem! Com tanta caminhada e pilates, vagabundo me chamando de gorda!
-Raiva, filha! Você bem sabe que não é gorda!
-Pra esses padrões zero cal, eu sou gorda, mas pros homens, acho que dou pro gasto.
-Modesta! Você é a maior pegadora que eu conheço!
-Também não é assim, vai. De repente um ou outro finge que me acha gostosa, vai saber.
-Homem não finge, baby, homem fica de pau duro!
-Pode crer!
-Mas conta do bofe! Quero saber.
-Cara, a parada que rolou foi meio bizarra.
-Como assim?
-A gente foi prum motelzinho meio de quinta, aquele esquema...
-Sim, normal também, né? Não dá pra exigir vista pro mar...
-Pois então, a noite foi ótima, ele me comeu umas 3 vezes. Bem disposto o rapaz, super carinhoso e tal.
-Onde tá a parada bizarra?
-De manhã acordei e ele não tava no quarto.
-Hummm, que péssimo.
-Pensei: “ah, ele deve ter horário, não quis me acordar”.
-No domingo?
-Pois é, mas o pior ainda estava por vir.
-Ai meu Deus...
-Ele foi embora e não pagou a conta. Quando desci, tive que pagar tudo, o visa electron tava fora do ar, eu tava sem cheque, fiquei contando moeda na recepção da espelunca, você acredita numa coisa dessas?
-Gente, que bizonho! Mas como que no motel deixaram ele ir embora sem te avisar?
-Foi o que perguntei e sabe o que eles me responderam?
-O quê?
-Que o cara tinha pedido pra me deixar dormindo, já que tinha deixado a grana comigo.
-Que cara de pau!
-Desde então fiquei meio ressabiada de dar de primeira pra quem eu não conheço.
-Ai, amiga, nem sei o que te dizer.
-Se duvidar, nem minha terapeuta vai saber!
-Mas também, esquece isso, vai, senão você vai ficar paranóica.
-É, tô tentando, mas de vez em quando me volta a cena deu contando moeda de um real com aquele povo olhando pra minha cara com olhar de pena, sabe assim?
-Bizarro, mas, ó, desanima não. Sabe quem perguntou de você?
-Quem?
-Alexandre.
-O moreninho bocudo?
-Esse mesmo.
-Hummm, delícia.
-Pois é. E esse você pode ter certeza que não vai regular a mixaria.
-Hahahahahahha.
-Isso, filha, tem que rir dessa situação, pra ela ir embora de vez.
-Total!

Ninguém precisava dizer, mas ambas sabiam que contar moeda na porta do cinema, nas lojas americanas ou na padaria é bem diferente de fazê-lo na recepção de uma espeluncazinha qualquer, sob o olhar de reprovação dos moralistas de plantão.

Por conta desse episódio, Ana agora só quer saber de dar pra homem rico.

Dali em diante, pra ela, passa a valer a máxima de quem dá aos pobres, invariavelmente, acaba tendo que pagar o motel.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

A segunda chance

-Amiga, pode me ouvir?
-Lógico, baby, que que foi?
-Cara, fui fazer a unha e na volta vi que tinha uma mensagem do moço no meu celular.
-Falando o que?
-Pedindo preu sugerir algum programa além da festinha aonde íamos nos encontrar hoje.
-Esse é o mesmo que furou contigo na semana passada?
-Esse mesmo...
-Resolveu dar uma segunda chance pra ele, foi?
-Escuta.
-Sim, ele te mandou mensagem e você respondeu o que?
-Sugeri um cinema.
-E ele?
-Respondeu um minuto depois pedindo preu escolher um filme.
-E você?
-Fui no Segundo Caderno, escolhi um filme e respondi a mensagem.
-E ele?
-Não respondeu.
-Será que ele não recebeu sua mensagem?
-Foi o que pensei...
-Por que você não ligou pra ele, pra tirar a dúvida?
-Foi o que fiz.
-E?
-Ele não atendeu.
-Hummm, amiga, que péssimo.
-Pois é.
-E ficou por isso mesmo?
-Não, mais tarde ele me mandou uma mensagem.
-Menos mal...
-É.
-E qual foi a da mensagem?
-“Oi, tava dormindo. Tô indo agora pra casa dos meus coroas, já que amanhã é dia dos pais. Beijo e divirta-se!”
-Uai, mas ele não sabia do dia dos pais?
-É a pergunta que não quer calar...
-Gente, que surreal!
-Pois é.
-E você respondeu o que?
-Nada né, amiga!
-Lógico!
-Mas e aí, você acabou indo na festa?
-Sim.
-Se divertiu?
-Te falei que tô numa fase boa...
-Conta.
-Conheci um rapaz enooooorme, que ficou jogando charme pra mim na pista de dança.
-E você resolveu jogar o charme de volta, né?
-Quem não tem cão...
-Caça com gatinho!
-Hahahahahahaha!
-Pois é, neguinha, não pode dar muita importância pra esses episódios.
-É mesmo...
-Que carinha é essa?
-Tô meio sem saber o que faço.
-Essa é a hora de não fazer nada.
-Como nada?
-Nada, bela! Na dúvida, a gente mantém o charme.
-Hahahahahahaha.
-E espera...
-Mas esperar o que? Ele furar mais uma vez?
-Não querida, espera e vê se vale a pena dar uma segunda chance pra ele.
-Terceira, no caso...
-Eu acho muita coisa, mas vai saber...

Se despediram e, no caminho de casa, cada uma chegou à conclusão de que Graham Bell até teve uma ótima idéia ao criar o telefone.

O que ele não poderia adivinhar era que sua invenção ia ser ao mesmo tempo solução e problema pra falta de comunicação da humanidade.

Porque, afinal de contas, esse negocio de se relacionar é saber dar e esperar telefonemas.

Não necessariamente nessa ordem.

domingo, 10 de agosto de 2008

O adorável escroto parte 2 (ou Babaquice tem limite)

-Ele leu o conto que você escreveu pra ele no blog?
-Sim. Disse que leu e morreu de rir.
-Nada mal...
-Aproveitou pra dizer que a pessoa que estava com ele morreu de rir também...
-Que pessoa?
-Foi o que perguntei.
-Por acaso era uma mulher?
-Lógico!
-Sabe que isso pode ser mentira dele pra ver sua reação, né?
-Sei, mas não faz a menor diferença se é mentira ou verdade...
-Exatamente, baby, muito caído...
-Caído pra caralho!
-Não gosto quando você fala assim de caralho! Já disse que isso não atrai coisa legal pra tua vida. Só pronuncia a palavra caralho com raiva, assim não dá! Do jeito que a situação está, esse tipo de atitude sua chega a ser antiecológica, amiga!
-E não foi só isso!
-Jesus, tem mais?
-Cara, ele teve a audácia de falar que meu conto era só mais um textinho de internet, que quase ninguém lia mesmo...
-Ihhhhhhhhhh...
-Ih o quê?
-Nada, deixa quieto.
-Diz, porra!
-Muito bem! Falou porra ao invés de caralho! Olha a evolução!
-Você não vai parar com isso não!!? Eu aqui te falando uma parada séria e você nessa merda, bicho, que porra dos infernos!

O tempo estava quase fechando quando as palavras vieram carregando o ânimo nos ombros:

-Desculpe, amadinha, tava tentando te relaxar, porque não tem mais jeito mesmo, né? O cara entrou nessa de ser um babaca, fazer o quê? Matricular ele na aula de etiqueta? Se ele é assim, deixa pra lá, se preocupa com as coisas que merecem sua atenção nesse momento.
-O mais engraçado é que ele não era desse jeito antes...
-Claro, assim são os babacas!
-Era super fino, preocupado com os detalhes...
-Um babaca detalhista, requintado e daí? Não deixou de ser uma babaca!
-Ele ficava dizendo que o nosso momento estava chegando, que eu precisava ser paciente, que nosso lance não era pra ser uma coisa efêmera, que precisávamos de tempo e coisa e tal...
-Tava te cozinhando em banho-maria!
-Pior é que é...
-Ah, cara, um homem que tem o desplante de mandar que leu seu texto ao lado de uma mulher, que eles morreram de rir juntos, e ainda complementa com um “seu conto é só um textinho de internet que ninguém lê mesmo” não é um cara gentil, concorda?
-Concordo.
-E você tá acostumada a ser bem tratada, né, querida?
-A pão-de-ló...
-Então, babou, né?
-...
-C’est fini, it’s over, that’s it!
-...
-Concorda que essa história já deu o que tinha que dar?
-...
-Chora não, honey! Imagina um cara desse depois do almoço de domingo, que horror que não ia ser! Deve ser do tipo que olha pros peitos das amigas na frente da mulher, que esquece aniversário de casamento, que pensa que flor é frescura, essas coisas.
-Sinistro...
-Já tô até vendo a cena: você fugindo pro CCBB, pra primeira mostra de artes plásticas, pra esquecer que tem marido. Ia passar a vida tentando fingir que domingos não existem! Um inferno! Não combina contigo isso, sinceramente! Você é uma mulher foda, não é pra qualquer detalhista que se esquece da gentileza, cruzes!

A ofendida enxuga as lágrimas, respira fundo e, enquanto pega o colírio na bolsa, cai em si:

-Nossa, que bom ouvir essas coisas, nega, brigada!
-É pra isso que existem as amigas, porque elas podem ver de fora. E de fora a vista é bem menos embaçada...
-A gente fica meio idiota quando tá a fim de alguém, né?
-Comigo também rola isso, de volta e meia ficar desse jeito que você tá aí, toda me sentindo meio boçal de ter dado corda prum figura tão merda quanto esse carinha.

E assim, como quem está de férias no Maranhão tomando sorvete de graviola, as amigas espremeram aquele episódio até a última gota, pois sabiam que somente dessa forma poderiam se ajudar na imensa dificuldade que é lidar com os próprios sentimentos, emoções, hormônios e todo tipo de substância ou presença que nos modifique a respiração e que nos deixe prontas para transgredir em paz.

E, em se tratando de babacas, a melhor coisa a fazer é sair de cena sem alarde, como quem diz que vai ao toalete e não volta pro final do espetáculo.

Porque circo de horrores é só pra quem tem estômago de avestruz.

domingo, 20 de julho de 2008

O adorável escroto

-Você tá de onda!
-Não tô, Lívia, ele mandou essa.
-Como é que é? Você e o Bukowski, o quê?
-Que eu, assim como Bukowski no início de carreira, não entendia nada do sexo oposto.
-Disse assim, na lata?
-Na lata, fiquei pretérita!
-Também ficaria...
-Pois é.
-Mas sabe que eu sempre achei meio Bukowski seus textos?

Mentira, Lívia nunca leu sequer uma linha dele. Mas aquela foi a única coisa que pôde dizer naquele momento, já que não se sentia à vontade de comentar com a amiga que o gatinho que ela tá amarradona de dar um confere podia estar personalizando demais suas observações literárias, provavelmente por estar se sentindo vulnerável dentro da relação. Ou por ter um pau muito pequeno. Ou um pouco fino. Enfim, independente do que fosse, era coisa de casal. E, nesses casos, o melhor é que as amigas não metam a colher.

De repente, do nada, surge a pérola:

-Nem te falei uma coisa, ele escreveu um texto pra mim.
-Mesmo?
-Aham.
-E aí? Legal?
-Intenso.
-Mas legal?
-Não sei, tinha uma coisa de esperar, mas não saber por que ou por quem. Uma coisa bonita, mas um pouco ensimesmada demais, sabe?
-Porra, mas você não sabe que ele é ensimesmado? Queria que ele escrevesse uma parada cool?
-Calma, gata!
-Foi mal, mas esse negócio de analisar homem não é fácil.
-Não estamos analisando, estamos comentando.
-Ah, ainda bem que você me avisou! Estamos comentando! Agora sim, entendi tudo!
-Debochadinha...
-Quer a verdade nua e crua?
-Sempre.
-Eu, como sua amiga, diria pra você sair fora desse cara enquanto ainda não deu pra ele e não ficou de quatro.
-Ficar de quatro não é mau, vai...
-Posso continuar?
-Claro.
-Onde eu estava mesmo?
-Na parte que eu ficava de quatro...
-Isso mesmo! Eu estava dizendo que, por outro lado, acho que o ensimesmado vai fazer esse vulcão que tem aí dentro explodir.
-Explodir como?
-Ah, uma coisa lava incandescente, saca?
-...
-Eu tive um cara assim também, ensimesmado, quase canalha, mas adorável.
-Quase canalha?
-Isso mesmo! Me escrevia umas coisas herméticas, tipo isso aí que você falou, de esperar mas não saber por que e nem por quem.
-Jura?
-Juro, isso é coisa que só um escroto adorável faz por você...
-Escroto adorável?
-É, darling, tem um monte deles por aí.
-Mas, vem cá, por que você nunca me contou desse cara?
-Porque se eu for ficar falando tudo que eu já vivi vou ficar parecendo sua tia, o que está longe de ser o caso.
-Você é mais rodada mesmo, qual o problema?
-Rodada é punk!
-Bucetuda, prefere?
-Melhor.
-Tá, bucetuda, diga lá, o que aconteceu com o seu ensimesmado?
-Um dia eu acordei e tive a certeza de que eu precisava de uma pessoa mais tranqüila do meu lado, independente de não ser tão intensa nem tão capaz de falar as coisas mais oportunas nas horas mais sensacionais.
-Sei...
-Uma pessoa que, apesar de não me deixar úmida com um único olhar, não me daria cortes tão secos, não me largaria derrapando na pista, nem me deixaria triste nos dias mais alegres.
-Nossa...
-Por isso não te falei nada, entende? Porque acho que você tem que ser a protagonista dessa história. Todo mundo na vida precisa aprender a decodificar, seduzir, comer e deixar ir pra sempre pelo menos um escroto adorável.

E assim, sem entrarem nos detalhes mais sórdidos, as duas ficaram lá pensando porque não poderiam ter tudo que queriam do jeito que achavam mais gostoso, como quando eram crianças e faziam charme pra Papai Noel.

E, enquanto pensavam, viram que o melhor mesmo era parar de pensar e ir correndo pro videokê do botequim da esquina, que estava pegando fogo, pra tomar uma gelada, comer um queijinho de coalho, morrer de dar risadas e adorar a lua, que transbordava de tão cheia.

Porque canta melhor quem canta pra subir.

sábado, 28 de junho de 2008

O casamento da filha da Dirce

Desde que minhas amigas começaram a parir de forma desenfreada e passei a freqüentar mais aniversários de um ano do que festas de adultos, optei por evitar casamentos, num mecanismo de defesa de minha mente balzaca, já muito permeada por reflexões. Mas, em alguns casos, fica feio faltar. Assim, fui parar no casamento da filha da Dirce, mulher que ajudou a me criar num tempo em que mamãe e papai trabalhavam como mouros pra sustentar quatro filhos. Dirce, além de tomar conta da gente, de dar almoço e de fazer bolo de chocolate, nos enchia de carinho. Tenho a impressão de que ela nem sabe o quanto me ajudou nos tempos de escola, entrando no quarto com suquinho de laranja e pão com ovo mexido. Vinha sempre na hora certa, quando os neurônios queimavam e eu estava começando a me sentir burra. Lembro também de bem pequenininha ir passar os fins de semana com ela na casa de sua família em Campo Grande, com seus mil e quinhentos irmãos, que me levavam pra festa junina, pro parquinho e prum monte de coisas que eu, garota de apartamento, curtia até o caroço. Dirce aturou muita coisa mais: caçula abusada que era, eu, além de fazer xixi na cama, tirava a roupa toda e, daquele jeitinho mesmo, parecendo um sachê de uréia, pedia espaço pra dormir no colchonete dela. Nem preciso dizer que não houve uma única vez que ela não me colocasse pra debaixo da coberta, tão quente como sua risada gorda. Dircinha se casou com o namorado de anos e, quando já tinha parado de trabalhar pra dar mais atenção à família, ficou viúva com dois guris pra criar. Essa foi a única vez que vi seus olhos redondos totalmente sem brilho. Mas essa coisa de filho pra criar é mesmo impressionante e, rapidinho, ela tava de pé de novo, trabalhando pra dar o melhor pros moleques, no meio de um monte de cunhadas que achavam que eram melhores que ela por terem curso superior e marido rico. Devagarzinho, fez seu próprio negócio, formou a menina advogada e botou o garoto na faculdade de farmácia. Mas ontem foi, sem dúvida, seu dia de glória: casou a filha com um rapaz bacana. Quando vi Dirce de longo entrando na Igreja e, logo depois, seu caçula acompanhando a irmã, fazendo as honras do pai, senti um orgulho imenso dela, de sua altivez e de sua incontestável bondade.

Na recepção, enquanto era tratada como madame, ouvi a pergunta de sempre:

-Tá namorando, filha?
-Ih, Dircinha, tá meio difícil...
-Vem pra Campo Grande, ném, aqui tem de sobra.

Esse é o espírito dela, mostrar que sempre tem de sobra. Ela, que cresceu com tão pouco, que deu tanto duro, vem falar de sobra. Mas a hora da verdade veio mesmo quando ela soltou, distraidamente, o valor de seu rendimento mensal, bem maior do que o meu, que tenho duas faculdades e um curso técnico completos.

Essa, sem dúvida, foi a melhor notícia da noite.

Essa é minha Dircinha.

Me deu até vontade de chorar de tanta emoção.

Mas não tava a fim de pagar pra ver se meu rimmel de madame era mesmo à prova d’água.

domingo, 22 de junho de 2008

Dó maior

Ele é o último a cumprir com o combinado e o primeiro a ter certeza da própria dúvida.

Tem fadiga pra intimidade e padece de profunda complexidade.

Gosta de dizer que é um cara simples, mas é tudo charme de artista.

Já ela é a primeira a fazer justiça com as próprias mãos e a última a duvidar de que ele um dia vai perder o medo do escuro.

Tem síndrome do pânico e padece de alergia a mentiras homeopáticas.

Gosta de dizer que é uma mulher forte, mas é tudo da boca pra fora.

Juntos, são mais separados do que notas dissonantes numa sinfonia em homenagem às almas dormentes.

Sinfonia em dó maior.

De mãos atadas.

E unhas curtas.

domingo, 15 de junho de 2008

Fora da área de cobertura

-Amiga, tá podendo falar?
-Tô aqui vendo um filme na TV, mas diga lá!
-Olha a situação: tava aqui no Mineiro com Clarinha, tomando umas, daí chega Alexandre naquele esquema “não é porque a gente não namora mais que eu não posso ser seu amigo nem ficar me lamentando com suas amigas, como bom coitadinho que sou”, sabe assim?
-Ui, sei.
-Pois então, sentou na nossa mesa e não vai embora nem fudendo, tanto que foi até pegar um casaco no carro.
-Vixe, quem pega casaco no carro quer ficar até de manhã...
-Então, só preciso de um telefonema seu urgente daqui a 5 minutos, do tipo “se você não vier agora me ver, eu me mato”!
-Pode deixar, mas porra, toda vez que você vai ao Mineiro o mala do Alexandre aparece! Não sei por que insiste em ir praí! Na boa, parece até que tá querendo encontrar com o cara!
-Bonita, isso não vem ao caso agora, ok? Me liga, que depois de escapar dele, a gente compra umas latinhas e vai pra sua casa, pode ser?
-Lógico!

Em 10 minutos, Clarinha, na maciota, começa a encenação:

-Acho que seu celular tá vibrando, Anita.
-Ih é! Gente, nem percebi.
-Não atende não! Que saco, deve ser esse povo do seu trabalho!
-Deixa eu ver. Ih, é a Fê.
-Então atende, né? Posso pedir mais uma?

Em uníssono, Anita (já com o aparelho no ouvido) e Alexandre, concordam:

-Pede!

Clarinha só levanta o dedo indicador, num gesto universal indicativo de que a cerveja precisa ser reposta na mesa.

Nisso, Fernanda, que teve de deixar seu filmezinho lavagem cerebral de lado pra participar do joguinho da amiga, cumpre com o combinado de tirá-la daquela situação. Sem, é claro, perder a chance de dar aquela sacaneada básica:

-E aí, Anita, tô ligando na hora combinada, viu?
-Oi, Fêzinha, que que mandas, amiga?
-Você sabe o que eu mando, vaca! Faz cara de sofredora agora, pra ver se convence alguém!
-Jura? Mas quando foi isso?
-Quando foi o que, sua falsa? Se vira, inventa uma história decente!
-Não, querida, não chora, que ele não vale isso tudo.
-Gente, você é uma atrizinha de quinta, hein, vou te falar!
-Ai, amiga, se você quiser que eu vá praí agora, eu vou!
-Vem, e vê se traz uma vodca decente dessa vez!
-Não, não vai atrapalhar nada, tô tomando uma aqui com a Clarinha. O Alexandre até apareceu, acredita?
-Que coincidência né, menina? Manda um beijo presse péla-saco!
-Não, querida, eles vão entender, fica tranqüila! Em meia hora tô aí, é só o tempo de fechar a conta e deixar Clarinha em casa, tá bem? Ou você quer que ela vá também?

Logo depois, desliga e, com o semblante compassivo, dá sua grande fala:

-Fernanda mandou um beijo pra vocês. Gente, desculpa, mas preciso ir, ela acabou de terminar com o namorado, tá péssima. Vou comprar uma vodka e dar uma assistência até ela vomitar e capotar, saca?

Clarinha, em busca do Oscar de coadjuvante, completa:

-Será que ela quer me ver também?
-Não amiga, infelizmente, essa eu que vou ter que segurar sozinha...
-Força, então, vai dar tudo certo!
-Quer uma carona?
-Quero.

Alexandre, num misto de entendimento e perplexidade, leva as moças até o carro. Como candidato à vaga de péla-saco do século, dá sua cartada final:

-Se você quiser, Anita, eu posso levar Clarinha em casa, pra você chegar logo na Fê. Nessas horas, quanto mais rápido se age, melhor, né? Vai que ela faz alguma besteira...

-Precisa não, querido, mas obrigada pela força, viu?

Alexandre voltou pro bar, provavelmente à caça de alguma ex-namorada pra impregnar antes de ir pra casa assistir ao Fantástico e bater uma punhetinha pensando em Anita.

Já as meninas, foram encontrar com a Fê, pra beber mais, falar mal dos homens e tentar entender porque moças como elas não gostam de rapazes como Alexandre, sempre dispostos a dar carona, a pegar casacos no carro e a pagar a conta.

Para moços assim, estavam sempre fora da área de cobertura.

Ou desligadas.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

A primeira vez

-Tem certeza que você nunca fez isso, Clara?
-Tenho.
-Nem beijinho inocente numa amiguinha da escola?
-Cara, pra você ter uma idéia, na escola eu era tipo Carmelita Descalça, não comia ninguém e tinha medo até de falar no assunto.
-Sei.
-Por que eu mentiria pra você?
-Nem um beijinho?
-Só uma vez, no bloco de carnaval, coisa alegórica.
-E aí?
-Achei meio com gosto de isopor.
-Hahahahahahaha.
-Sério!
-Mas então por que isso agora?
-A questão não é essa. Eu achei você linda e você ficou me tentando a noite inteira.
-Eu e o dono da festa.
-Mas o dono da festa é igual a quatrocentos outros. Fala coisas previsíveis de forma previsível no momento mais previsível de todos.
-Esquema show de obviedades, né?
-Exatamente.
-Esses meninos parece que ensaiam uma coreografia onde os passos ousados são proibidos.
-Pois é...
-Mas você não vive sem eles, né?
-Por enquanto ainda não consegui um meio de ser emocionalmente auto-suficiente.
-Me diga uma coisa: você se masturba com freqüência?
-Claro.
-Com essa unha? Duvido.
-Qual o problema da minha unha? É grande, e daí?
-Unha grande é uma coisa! Isso aí é um abridor de lata adaptado pra buceta!
-Nossa, Sarah, que lirismo...
-Fora de brincadeira agora, você sabe que eu sou casada, né?
-Que nem o dono da festa.
-Hahahahahahha.
-Você sempre ri de tudo assim?
-É o jeito, baby.
-Vem cá, vem.
-Eu juro que estou morrendo de medo dessa sua unha.
-Jesus, me dá uma lixa então ao invés de ficar nessa reclamação!
-Você é uma lasciva!
-Nunca disse o contrário...

As palavras enfim deram espaço pras linguagens não-verbais de largo alcance.

Foi então que Clara percebeu a grande diferença entre beijar uma mulher em pé, no meio do bloco, e se deitar com outra, em completo silêncio.

Ainda que, em ambos os casos, seja tudo carnaval.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

A primeira linha

Ele disse que escreveu a primeira linha e nada mais.

Disse também que o futuro estava sendo feito e que o passado não cabia na garganta.

Tinha autoridade pra afirmar que no final um bom chá de camomila tudo resolveria.

Já ela, carregada de hipóteses e parábolas, estava pra lá da nonagésima frase.

Tomando vinho tinto barato como quem saboreia voz rascante de atiçar pescoço branco saudoso.

Na linha de frente, jaz o arrepio.

sábado, 26 de abril de 2008

Os braços fortes

Quando não tenho trampo nem pilates nem sobrinho na porta do quarto perguntando “Tia Poli já acordou?”, gosto de me dedicar a um esporte mais que radical: dormir profissionalmente. Às vezes, num misto de insanidade e auto-punição, coloco o despertador pra tocar, abro os olhos, agradeço a Deus poder dormir por tempo indeterminado e volto para Morpheu que, se de carne e osso fosse, se daria muito bem comigo, porque me amarro naqueles braços fortes e imprevisíveis.

Dia desses, enquanto jazia tranqüila, tive um sonho mais que tórrido com Marcelo, um ex-ficante dos tempos de putaria agressiva. No sonho ele era ele mesmo, só que aditivado com dez doses de catuaba na veia, coisa de enrubescer Dercy Gonçalves e Aracy de Almeida numa só tacada. E o pior de tudo: eu negava fogo. Sinceramente, negar fogo pra homem atiçado é pior do que o leite derramado em vão por oitocentas vacas profanas. Acordei mal. Sempre me orgulhei de minha putice e na hora do vamo vê, da finalização, do atendimento ao cliente, estava eu lá, posando de virgem dos lábios de mel. Claro que faço isso de vez em quando, mas aí já é receio de dar pra qualquer amigo e estragar uma relação maneira por uma trepadinha tola.

Porém, esse não era o caso, porque esse ex costumava me comer com o devido desrespeito necessário às fodas bem-sucedidas. No dia seguinte, quase liguei pra ele. Mas Sofia, amiga que atura minhas confissões de gaveta há mais de 13 anos, foi firme:

-Não liga não, bonita, não carece.
-Ah, acho que ele vai ficar envaidecido.
-Fala sério, você não tá nem aí pro ego dele, só quer dar pro cara!
-É, né?
-Gata, é melhor alugar um homem do que ligar pra Marcelo.
-Nossa, que radicalismo...
-Você reclamava dele à beça, dizia que ele era um confuso...
-É, ele pagava de assustadinho da Estrela.
-Porra, na boa, mulher que dá pala pra assustado não merece perdão!
-Ele não é um babaca, vai.
-Ih, começou a usar os verbos no tempo presente, que perigo...
-Ele não morreu, uai!
-Não é porque ele tá vivo que virou o cara mais maduro da atualidade, baby.
-Você tem razão, é que ando achando todo mundo tão mais ou menos...
-Mas é isso mesmo, a estética da mediocridade é avassaladora, poucos se salvam.
-E aí, como se faz?
-Não faz, compra pronto!
-Hahahahahahaha! Você tá me sugerindo um garoto de aluguel, né?
-Eu não disse isso!
-Não disse, mas pensou...
-Penso nisso há um tempo.
-Aham...
-Tenho uma proposta pra te fazer, inclusive.
-Jesus...
-Sabe a Cassandra, que estudou com a gente no BRASAS?
-Claro que sei.
-Então, ela alugou um ótimo e quer passar a indicação pra gente.
-Putz, pagar por sexo é um pouco demais!
-Ué, você vive rachando conta de motel, não é a mesma coisa?
-Claro que não, rachar motel é normal!
-Normal porra nenhuma!
-Tem razão, não é normal porra nenhuma! Acho que já me acostumei com essa realidade.
-É triste depois de abrir as pernas ter que abrir a carteira...
-Não dramatiza também, vai, a gente só conhece homem duro, não dá pra exigir camarões grelhados e champagne no balde de gelo...
-Tá certo, vamos continuar fingindo que isso tudo não é com a gente...
-Melhor regular as doses de realidade senão a gente pira, belona.

Fui pra casa pensando na aspereza das situações que a vida nos imputa e cheguei mais uma vez à conclusão de que alugar um homem é muito hardcore pro meu rockzinho progressivo. Não sou mulher disso nem nunca vou ser. O fato é que aquele papo todo me deu um sono fudido. Tomei uma taça de vinho suave (porque não faço a linha refinada), quarenta gotas de tintura de valeriana e parti pros únicos braços fortes disponíveis no momento.

Pelo menos não teria que abrir a carteira depois.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

O privilégio

Minha amiga Dani é quatro anos mais nova que eu. Agora isso não faz a menor diferença, mas na época em que nos conhecemos ela era a criança virgem e eu, a putinha iniciante. Se soubéssemos que a vida nos traria tanta realidade, teríamos sido gurias pra sempre. Passávamos o dia entre pas de deux, grand jetés e sapatilhas de ponta. Nosso sonho era dançar no Municipal e, para tanto, vivíamos a encostar o pé na orelha e a fazer cara de que aquilo não doía nada. Mas isso tem tempo. Isso é dos idos que dieta se chamava regime, que só se beijava um homem por noite e que ainda dava pra namorar dentro do carro nos mirantes da cidade. Uma época onde ninguém discutia se o tomate era transgênico e nem se a gordura era hidrogenada. Bons tempos.

Já adultas, perdemos o contato. Mas a vida, sempre disfarçada em sua falta de sentido, tratou de nos reaproximar. Nos esbarramos numa praia de noite, onde falamos de novas questões e de velhos medos, como se não tivesse se passado nem uma semana. Àquela altura, namorar no carro já era bem perigoso, mas ainda se beijava apenas um homem por noite. Bons tempos.

Depois disso, fiquei perdida e acho que ela também. Essa coisa de ter de ser bem sucedida, gostosa, bem comida e simpática foi demais pra nossa ética interna. Isso foi mais ou menos quando regime passou a se chamar vida light e quando mudávamos de profissão após cada viagem a Ibitipoca. O fato é que não tínhamos nenhum medo do perigo de sermos nós mesmas, ainda que isso significasse o caos completo. Bons tempos.

Mais recentemente, na UFF, mesmo em cursos diferentes, passamos a preencher de interseções nossos círculos de amizade. Nesse momento ficou claro como era antiquado beijar um homem só por festa e notamos que, apesar de muito vigorosas e gostosas, já não éramos mais tão meninas assim. Mesmo sem perceber, tínhamos completado quinze anos de amizade. Bons tempos.

Agora Dani está nos States, casada com um gringo sangue bom e trabalhando na área que escolheu. Lá ela é a brasileira gostosa, a exótica, a tesuda. Mas sente falta daqui, do cheiro de nossas risadas e do descompromisso das cervejas geladas que só nós sabemos tomar. Não ter amigos por perto é duro, mas ela sabe que estou sempre pensando nela. Estamos separadas, mas juntas. Esse é o grande barato da história. Tem gente que não tem isso na vida. Nós duas conquistamos o privilégio de sentir saudade.

E pouca coisa deve ser pior do que não sentir nada.

Esse risco não corremos. Conosco, todos os tempos são bons.

domingo, 6 de abril de 2008

A planilha

Um belo dia, Helena começou a refletir sobre sua performance etílica. Pensou que se dos vinte e poucos aos trinta e poucos tinha bebido de forma industrial pelo menos três vezes por semana, estava na hora de, aos trinta e muitos, começar a reduzir os danos. Queria era ficar bebinha e facinha com quem merecesse o crédito e parar de dar condição pra qualquer maluco que ficou muito mais gato e interessante só por conta da birita. Tinha perdido a conta de quantas vezes teve de contar o dinheiro que lhe restava na carteira, para, aí sim, calcular se na noite anterior tinha pego um táxi, comido um podrão, ou mesmo comido alguém num desses moteizinhos de quinta da Lapa, que não têm nem camisinha à venda. Também foram muitas as vezes que teve de ligar pras amigas e perguntar se tinha tirado a roupa na praça, dançado can-can em cima da mesa, chamado algum playboy fortinho de viado ou outras coisas do gênero, que só acontecem com os bebuns.

Resolveu, do dia pra noite, que sua vida agora seria cool. Seu passado é que tinha sido trash.

Quando foi comunicar à melhor amiga, teve apoio incondicional:

-Muito legal, boneca, acho que tá na hora de ficar chic!
-É...
-Amnésia alcoólica é cafona!
-Pois é, fora o corpitcho, que tá merecendo atenção.
-Claro, não adianta nada tanto pilates, tanta caminhada, se a birita excede os limites.
-É, quero ficar gostosa mesmo, esquema arrasando no recreio.
-Já sei o que você vai fazer!
-Claro que sabe, acabei de te falar, doida!
-Não, bela, você disse o que você quer fazer e eu, como produtora cultural, vou te dizer como você vai colocar seus planos em prática. E de graça, viu? Só porque você é minha camarada.
-Sei...
-Lembra daquela frase da Yoko Ono, que diz que droga é o segundo copo quando o primeiro já matou a sede?
-Claro, porra, eu até tive que te explicar o significado na época porque você não entendia, lembra?
-Lembro, mas abafa esse caso! A questão é que você não pode parar de beber definitivamente, porque senão vai ficar chata demais e ninguém vai te aturar.
-E quem disse que quero parar? Quero beber socialmente, se é que isso existe...
-Então, um caso típico pro Excell!
-Como?
-Claro! Se ele faz tantas planilhas, por que não poderia organizar sua freqüência etílica?
-Gata, você quer fazer um cronograma, é isso?
-Não, querida, é mais que um cronograma. É uma planilha completa, com custos, freqüência e, principalmente, flexibilidade, porque, por exemplo, se combinarmos que você vai beber até dez chopps por semana e se, por conta de sua vida social intensa, você, numa semana qualquer, exceder esse limite, a gente vai e compensa nas duas semanas seguintes, onde você vai poder beber menos sem, com isso, sair da linha e nem ficar paranóica, sacou?
-Porra, essa sua faculdade até que adiantou de alguma coisa, hein, filha? Gostei!
-Desculpa eu ter nascido, tá?
-Aqui, vamos tomar umas então, pra comemorar?
-Claro, daí já começamos a esquadrinhar nossa tática, ok?
-Isso!

Foram e curtiram cada gole com uma alegria inusitada. Lá pelo quinto chopp, apesar do desejo de beber mais e mais, pensaram na Yoko e fecharam a conta, decidindo ir pra casa apenas levemente altas. A produtora cultural, imbuída da proposta, no dia seguinte enviou a planilha hepática pra amiga.

Que, apesar de ter nascido Helena, não queria morrer Heleninha.

segunda-feira, 31 de março de 2008

A parada hetero

Estava eu a trabalhar numa mostra no CCBB, vendo se o tempo passava de forma menos tediosa, quando encontro um rapaz que estuda cinema na UFF. Na verdade, quando ele entrou na faculdade eu já estava de saída, portanto, nem somos muito amigos, apenas colegas. Desta forma, nossa conversa nada mais é do que um show de amenidades, uma coisa simpatia é quase amor, bem comum em nosso meio. Só que dessa vez foi diferente. Não sei bem por que, mas o moço levantou questões bastante elucidativas da angústia do macho heterossexual pós-moderno.

-Por que você não foi à chopada ontem?
-Ah, porque quase não conheço mais ninguém da UFF. Além do mais, tô aqui na mostra, sabe como é, trabalhar de ressaca não rola...
-Claro, claro.
-Mas e aí? Tava legal?
-Mais ou menos
-Cerveja quente?
-Que nada, a cerveja tava gelada, o problema é que as meninas também...
-Jura? Poxa, na minha época o bicho pegava, era uma carnificina louca!
-Bons tempos...

Sem querer tirar minha oxítona terminada em u da reta, eu tenho lembranças (e amnésias) ótimas das chopadas, aliás, eventos essenciais dentro de um curso de graduação, onde interiores se revelam, namoros começam e filmes se queimam, exatamente nessa ordem.

Assim sendo, resolvi dar corda pro moço, pois senti que sua aflição era real.

-Mas não tinha nenhuma menina assim mais animada?
-Não.
-Será que você não está sendo muito exigente?
-Pior é que não! Eu estava mais do que facinho, mas ninguém se comoveu com minha macheza...
-Sei, posso te perguntar uma coisa?
-Claro.
-Você costuma citar filósofos em suas cantadas? Porque isso ninguém merece, né?
-Claro que não!
-Vou ser bem franca com você: pra mim, homem que leu Foucault demais não dá em boa coisa...
-É, nem pensar, fica micropoder pra lá, vigilância pra cá. Melhor não!
-Com certeza! Mas então qual será o problema?
-Você quer mesmo saber? Não vai me achar um machista recalcado?
-Diga lá!
-Acho que as meninas estão preferindo a companhia de meninas. Nós, homens heterossexuais, fazemos parte de uma minoria excluída. Inclusive, estou pensando em fazer uma parada do orgulho hetero, o que você acha?
-Hahahahahahahahaha! Orgulho hetero! Incrível!
-Sério, minha idéia é organizar um esquema bem bacana, criar um símbolo, ter uma bandeira e tudo o mais! Você me ajudaria?
-Sim, só temos que tomar cuidado pra não parecer coisa de gente reacionária, que prega a heterossexualidade em detrimento da diversidade.
-É mesmo, nem tinha pensado nisso...
-Mas a idéia é interessante, é só mesmo se ligar que a questão é delicada.
-Claro!
-E pode contar comigo, tô contigo e não abro!
-Poxa, até me animei agora, obrigado pela força!
-Que nada, disponha.

O colega foi embora e eu me senti uma pessoa melhor em poder ajudar. Afinal, até já perdi a conta de quantos homens sexualmente confusos passaram por mim e acabaram virando minha cabeça pelo avesso. É muito estranho se sentir minoria, ainda mais se o que gostamos é tido como “normal”. Mas, por outro lado, é sensacional perceber que o mundo está girando numa velocidade que não podemos mais controlar.

E que a liberdade, de tão livre, está sempre a nos criar novas prisões.

domingo, 23 de março de 2008

O tatame da implicância

-Ai, amiga, todo cara interessante que eu conheço, é sempre a mesma coisa.
-Dá pra ser mais específica?
-Ah, aquele velho esquema...
-Que esquema?
-Conhece, dá uns beijos, saca a pegada, dá o telefone, adiciona no msn, vira amiga no orkut, tudo isso em quinze dias.
-Sim, faz parte dessa coisa pós-moderna a velocidade com que as pessoas ficam íntimas.
-É, mas esse negócio de orkut, definitivamente, é o começo do fim...
-Fim do que, guria?
-Ah, fim da poesia, sabe? Por exemplo, esse carinha.
-Qual carinha, o que tem uma filhinha?
-Não, esse aí sumiu pra todo o sempre. Tô falando desse outro, mais recente...
-O que tem hálito de canela?
-Exatamente! Escuta só: ontem fui responder a um recado fofo que ele deixou pra mim.
-E tinha um recado duma gostosona na página dele, né?
-Caraca, como você sabe?
-Porque é um clássico do orkut, querida: a mulher chega, vê um recado da gostosa na página do peguete, vai no álbum dela pra dar aquele confere, vê que a mina é gata mesmo e já começa a ficar paranóica, achando que não é páreo pra esse tipo de potranca. Vejo isso toda dia lá no consultório!
-Pô, mas não é uma situação broxante?
-De certa forma é, mas o buraco é mais embaixo.
-Como assim?
-Quer mesmo ouvir?
-Claro!
-De repente você está construindo uma pessoa que ainda não existe de fato, sabe? Tudo bem, o carinha é interessante, beija bem, tem hálito de canela, te dá uns moles e tal...
-Ele me mandou flores vermelhas na semana passada...
-Legal, muito legal mesmo, a coisa está indo por um caminho bacana, mas veja bem, homem, de uma maneira geral, gosta de saber que tem várias mulheres disponíveis na área, sabe assim?
-Sei bem...
-Isso até ficar completamente envolvido com uma só e querer assumir uma relação a dois, concorda?
-Concordo.
-Portanto, tome o fato do hálito de canela ter potrancas por perto como uma coisa normal.
-Tá, normal é, o cara é solteiro. Mas entende que eu não tenho como competir com esse tipo de coisa?
-Entendo, claro, mas também não dá pra querer que o cara esqueça todas as amigas gostosas só porque há uma semana você apareceu na vida dele!
-Duas semanas! Conheço ele há duas semanas! Mas você tem razão, não dá!
-Vejamos pelo outro lado. No seu orkut deve ter um monte de recado de gatinho, ou não?
-De vez em quando até rola, mas eu corro pra apagar, pra ele não ver.
-Não acredito nisso!
-Ah, não gosto de ficar me exibindo...
-Posso te fazer uma pergunta bem indiscreta?
-Pode.
-Há quanto tempo você não trepa?
-Putz, tenho até vergonha de dizer.
-Tem mais de três meses?
-Por aí.
-Então, acho que isso é falta de sexo, amiga, na boa. Se você der prum homem que saiba o que está fazendo, num instante esse negócio de orkut passa, você vai ver.
-Cansei de sexo casual, já te disse!
-Até entendo seu lado, mas faz com um carinha legal, daí fica uma coisa emocionalmente segura, sabe?
-Sei...
-Não tem nenhum ex que você queira dar uma revisitada?
-Deus me livre!
-E amigo? Não tem nenhum que você queira provar?
-Já comi todos que eu tinha que comer.
-Não sobrou nenhum? Logo você, que anda com tantos homens interessantes...
-Tem aquele menino da faculdade que te falei uma vez, sabe, um que implica comigo o tempo todo?
-Aí, tá vendo? Homem implicante é o máximo! Corre até o risco de tomar umas porradinhas!
-Ai, não me dá idéia que eu me animo...
-Garota, tô aqui pra te animar! Você é a maior gostosa, rabuda, cheia de disposição!
-É, não chego a estar mal na fita não...
-Claro que não, ainda por cima inteligente, mulher de opinião! Fica aí perdendo tempo com recadinho de orkut! Quero ver se essas gurias sabem fazer metade do que você sabe ou se é tudo picolé de chuchu...
-É, vou chamar o implicante pra jogo!
-Chama, bela! E te digo mais: do jeito que você tá, a ponto de bala, é capaz de apanhar bonito...
-Ui, fiquei toda arrepiada agora.
-É, garota, a perspectiva de uma surrinha sempre deixa a gente esperançosa...

Seguindo os conselhos da amiga, a rabuda chamou o implicante pra jogo. Coincidência ou não, nesse mesmo dia, o hálito de canela deixou outro recadinho lindo em seu orkut, ao que ela respondeu sem esperanças rançosas, pois tinha parado de se preocupar com as gostosas de plantão.

O fato é que os hematomas provenientes do tatame da implicância a envaideceram de tal forma que, dali em diante, perto dela, qualquer potranca não passaria de um picolé de chuchu.

Na versão diet, logicamente.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Cenografia à distância

-Há quanto tempo ele se mudou?
-Dois meses.
-E vocês chegaram a ter algo mais assim íntimo?
-Ficamos no estágio 1.
-Como é o estágio 1?
-Vai dizer que você não sabe?
-Querida, tô casada há vinte anos, o único estágio que ouço falar é o do meu filho...
-Filipinho tá fazendo estágio já?
-Casei grávida né, bonita, esqueceu? Meu filho é um homem feito, pagou jantar pra mim outro dia e tudo, quase chorei de emoção, mas conta, como é o estágio 1?
-Ah, muita conversa, simpatia, sintonia, essas coisas...
-Mas o olhar dele te queima?
-Acho que sim.
-Acha?
-Sim, acho, não sou mulher de tantas certezas.
-É, você tem razão, certo mesmo só as contas que vencem no dia 10, mas conta mais!
-Então, ele pegou meu telefone e a gente tem se falado umas três vezes por semana.
-Quem liga?
-Ele.
-O homem faz três interurbanos por semana sem nem ter beijado sua boca ainda?
-Isso mesmo.
-Geeeeeeeeeente! Sen-sa-cio-nal!
-Pois então, a coisa tá esquentando
-Já vi que alguém vai viajar em breve...
-Ele me diz cada coisa que me deixa num estado...
-Ai, que delícia.
-Teve um dia que tomei umas cervejas e começamos a ter uma conversa assim mais quente, sabe?
-Sei, sexo verbal.
-Exatamente.
-Delícia...
-Daí eu disse pra ele que estava toda molhada.
-E ele?
-Continuou me dando corda até eu ficar numa situação extrema, quase subindo ladrilho de tamanco!
-Ladrilho de tamanco?
-É, explodindo.
-E ele?
-Disse que também estava do mesmo jeito.
-Deus queira que ele não suba ladrilho de tamanco, porque aí poria tudo a perder...
-Não faz gracinha que é sério!
-Tá bem, mas fiquei imaginando o bofe de tamanco e confesso que não foi o melhor pensamento do dia.
-Quer deixar eu terminar de falar?
-Deixo, lindinha, claro!
-Ontem ele veio me dizer que não fica assustado com essas coisas que digo.
-Que ótimo, ponto pra ele! Homem assustado cansa.
-É, mas ele acha que o que eu digo no telefone não é verdade.
-Como assim?
-Ele diz que eu minto por estilo, que minha umidade é cenográfica, que eu fabulo para envaidecê-lo e que, por isso mesmo, ele gosta.
-Nossa! Umidade cenográfica é coisa fina!
-E ainda culminou com a seguinte frase: “como pode querer que a mulher vá viver sem mentir?”
-Adorei esse rapaz, ele arrasou!
-Mas ele não acredita em mim!
-Ele tá querendo te conhecer, amiga, daí diz essas coisas, pra te fazer pensar nele mais e mais. Coisa de homem, aproveita!
-Tá bem.
-Você tá acostumada a ter todas as respostas, né?
-É.
-Então deixa virem as perguntas difíceis, bonita, sem medo!

Ficou pensando nas perguntas escabrosas e nas respostas elaboradas que viriam pela frente. E só então percebeu que em breve comprará uma passagem pra longe de casa e pra dentro de si mesma, em busca de uma cenografia que, de tão bem encenada, pareça real.

E que, de tão real, pareça encenada.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Dicas práticas para nao queimar o filme do gênero feminino numa só noite

Bons rapazes ainda há, ao contrário do que reza a lenda urbana pessimista de nossos tempos. O que está em falta, de fato, é o critério. Esse sim, se estivesse à venda, já teria esgotado há muito. Os pés são a todo instante trocados pelas mãos e as chances de ficar em silêncio, violentamente desperdiçadas. Diálogos deprimentes costumam rondar aquelas horas constrangedoras que se seguem ao sexo casual, geralmente prematuro e não muito gostoso, diga-se de passagem. Um amigo que não direi o nome me contou umas histórias impressionantemente desesperadoras. Pra começar, cabe ressaltar que esse amigo é pitéu, além de talentoso e carinhoso, atributos que o colocam no topo da lista de muitas meninas. Algumas até conseguem dar pra ele. Porém, poucas deixam marcas para além de unhadinhas frívolas. Poucas foi gentileza minha. Nenhuma conseguiu deixar qualquer marca que valesse a lembrança, pra ser mais precisa e menos benevolente (que não estou aqui pra passar a mão na cabeça de mulher que acha que um par de peitos durinhos e uma bucetinha molhada dão conta do recado de ser algo além de uma boneca inflável com pinta de intelectual). Nenhuma, apesar da evolução do pensamento em torno da causa feminina, conseguiu fazer o serviço completo, que na minha época era chamado de barba cabelo e bigode. Não conseguiram e não conseguirão, enquanto se fiarem na encenação e na pseudo-putaria. E, principalmente, enquanto estiverem mergulhadas nas profundezas da falta de assunto.

Agora vamos aos fatos:

. Capítulo Primeiro: Da hidratação

-Tem água na sua casa?
-Sim, claro.
-Você pegaria pra mim? Fico sem jeito de abrir sua geladeira...

Depois de abrir as pernas e deixar a mangueira entrar, esse papo de não abrir a geladeira soa como uma anti-metáfora. Algo que transita entre os dois pesos e as duas medidas.

Dica prática: Parta sempre do pressuposto de que na casa das pessoas tem água potável.

. Capítulo Segundo: Do transporte.

-Você tem telefone de alguma companhia de táxi?
-Sim, claro.
-Teria como ligar pra mim?
-Tem alguns números presos na geladeira.
-Ai, pega pra mim? Fico sem jeito de entrar na sua cozinha...

Mais uma vez a falta de jeito aparecendo como fator determinante.

Dica prática: Ande com telefones de companhias de táxi no celular e pare com esse charminho de artista em fim de carreira.


Capítulo Terceiro: Do preservativo

-Você tem camisinha, né?
-Sim, claro.
-Poderia colocá-la?
-Se você esperar meu pau terminar de ficar duro...

Uma mulher que não conhece o grau de paudurescência necessário para a inserção da camisinha é capaz de acreditar que beijo na boca engravida.

Dica prática: Pau duro não tem esse nome à toa. Encoste e veja por você mesma.

Capítulo Quarto: Da necessidade de provar que não se é burguesa.

-Você gosta de samba?
-Sim, claro.
-Já foi na feijoada da Portela?
-Nunca fui.
-Ai, como você faz isso com você mesmo? Lá é que é samba de raiz, samba de verdade.

Tá bem! Quero ver dançar com os bebuns suados de Madureira sem ficar com nojinho nem medo de ser estuprada.

Dica prática: Quando quiser tirar onda com o gatinho, esqueça o samba. É óbvio demais.

Haveria outros capítulos, mas só esses quatro já me irritaram o suficiente. Porque esse tipo de comportamento denigre anos e mais anos de luta pela liberação sexual e pelos direitos da mulher.

Portanto, se você é ingênua, não pose de puta. Porque ser puta não é pra qualquer uma. Seja você mesma, aí, quem sabe, até sua inexperiência vai ser charmosa.

Mas, por favor, de manhã, depois de um sexo meia-bomba, fique em silêncio.

Guarde seus comentários pras amigas da facu. Elas estão mais acostumadas com isso.

O pilates de Lisandra

Lisandra anda meio cheinha e resolveu voltar a praticar esportes. Começou com as caminhadas matinais, que lhe fazem muito bem, pois a deixam mais bem disposta para encarar o tranco do trabalho, mas ainda lhe faltava algo. Foi quando encontrou Alícia, sua amiga de escola, que sempre foi aquele tipo meio sem tônus, quase flácida. Pois aquela Alicia tinha ficado pra trás, dando lugar a uma deusa grega. Lisandra quase não a reconheceu na rua. Após o estranhamento inicial, travou-se um desabafo frenético, quase coisa de gente bipolar:

-Poxa, mas você está ótima! Nem te reconheci...
-É, né? Nem parece a velha Alicia! Quer saber meu segredo?

Lisandra, enlouquecendo por dentro, mas não querendo dar pinta de invejosa, finge que nem é com ela:

-Ah, querida, essas coisas não se contam....
-Contam, sim, besteira, quero mais é que todo mundo fique gostosa. Afinal, o que é meu tá guardado, né não?
-Isso é verdade, que bom que você pensa assim!
-Então, menina, tudo começou quando descobri que tinha uma hérnia na coluna lombar, queriam até me operar, olha que horror, logo eu, que só de entrar em hospital tenho taquicardia!
-Jesus...
-Pois é, fiz um exame bizonho, desses que te colocam dentro de um tubo, sabe? Olha, pra você ter uma idéia, tiveram que me dar bola preu parar quieta!
-Gente...
-É, isso é só o começo, tá com tempo?
-Tô.
-Ótimo. Daí passei por um monte de ortopedistas, que ficavam vendo meus exames e dizendo que a coisa estava preta e coisa e tal.
-Nossa...
-Pois é. Pra resumir, chegaram à conclusão de que eu tinha que fazer RPG, que era melhor que operar. Fiquei uns 3 meses nessa. Do RPG, me recomendaram aulas de alongamento e pilates. Foi aí que tudo começou a mudar na minha vida.
-Com o pilates?
-Sim, a coisa é impressionante! Vou te dar um exemplo: sabe quando a bunda começa a diminuir antes de cair de vez?
-Sei bem, isso está acontecendo comigo agora.
-Então, é exatamente essa a hora de começar o pilates! Veja bem, a bunda que já diminuiu, não tem mais jeito, paciência! Mas a indefectível, temida e lastimada queda definitiva é interrompida, ou pelo menos adiada por alguns anos, não é fantástico?
-Ah, Alicia, fala sério!
-Eu estou dizendo, acredite em mim, você sabe que eu nunca fui a mais gostosa da turma!

O silêncio que se seguiu foi a resposta mais contundente que Lisandra poderia ter dado à velha amiga de adolescência. Mas, realmente, essa história de fazer a nádega reagir à gravidade lhe interessava. E muito. Afinal de contas, estava começando a namorar um rapaz e ainda não tinha tido a coragem de ir à praia com ele por puro medo do mais chauvinista de todos os hábitos masculinos: o teste da areia.

-Prossiga.
-O lance é simples, tá com tempo mesmo?
-Estou.
-Vamos comigo agora lá na minha academia fazer uma aula experimental, que tal?
-Agora?
-Sim, te empresto uma bermuda, ando sempre com uma extra.
-Tá bem, vamos!

Lisandra até tinha compromissos bem importantes, mas resolveu desligar o celular e simular um imprevisto qualquer, pois entendeu aquele encontro com sua colega de ginásio como coisa do destino.

Nunca contou esse episódio a ninguém. Simplesmente matriculou-se na academia e, duas semanas depois, já estava indo com seu gatinho à praia num fim de tarde. É claro que não houve tempo hábil para o pilates se fazer agir, porque milagre é coisa mais difícil de acontecer.

Mas pelo menos a gravidade parou de agir em sua auto-estima.

O medo de amar

-E aí, cara, beleza?
-Beleza.
-Como é que tá essa força?
-Tudo tranqüilo e você?
-Também, tranqüilão.
-Legal, e a Laurinha, tá bem?
-Tá, sim, cada dia mais linda.
-Pô, tô com a maior saudade dela, vamos marcar de vocês irem lá em casa dia desses.
-Claro, vamos sim!
-E com a mãe dela, tá tudo certo?
-Tá sim, ontem mesmo dormi lá.
-Ah é?
-No sofá, cara!
-Tá certo, viva a pós-modernidade! Mas, vem cá, e a tal menina que você conheceu, como andam as coisas?
-Indo.
-É?
-Sim.
-Vocês têm se falado?
-Mais ou menos
-Existe isso? Se falar mais ou menos?
-Na verdade a gente não se fala desde o carnaval.
-Por quê?
-Eu liguei pra ela e ficamos de nos encontrar, mas não rolou...
-Por que não rolou? Vocês se desencontraram nos blocos?
-Não.
-Então o que foi?
-Eu fiquei de ligar de novo pra marcar aonde iríamos nos encontrar e não liguei.
-Pô, cara, mas do que você tem medo?
-Porra, mas que saco! Essa é a mesma pergunta que ela vive me fazendo!
-E você responde o que a ela?
-Eu nunca consegui responder.
-Mas pelo menos você sabe do que tem medo?
-Tenho medo de me fuder de novo, eu tenho uma filha, não sou um cara livre e desimpedido.
-Sim, mas ela sabe da Laurinha, né?
-Sabe e acha ótimo.
-Caralho, meu irmão, então qual é a porra do problema?
-É esse poder que eu sei que ela pode vir a exercer sobre mim, não sei se agüento esse tranco agora!
-Mas você não acha que ela tem o direito de saber disso?
-Não, porque daí fico fragilizado diante dela.
-Então, prefere simplesmente sumir, como um moleque?
-Eu não sou moleque, porra, eu tô confuso, assustado, sou um monstro por isso?
-Claro que não! Nem foi isso que eu quis dizer, desculpe!
-Eu simplesmente não consigo pegar o telefone e ligar pra ela. Ainda mais agora, depois de tanto tempo, capaz dela nem querer me atender...
-Se ela não quiser te atender, pronto, você vai saber que não tá rolando mais. Simples assim!
-Nem é tão simples como você fala...
-Cara, eu não te vejo tão inquieto há um bom tempo. Isso pode significar que essa moça toca você de alguma forma, né?
-Porra, só de ouvir a voz dela eu fico de pau duro!
-Então, bicho, vai deixar barato assim? Tá dando mole pro azar, meu camarada! Mulher maneira tem muita, mas mulher maneira que te deixa de pau duro só com a voz é mais raro, fala aí!
-Ô!
-Escuta teu cumpadre aqui, pega essa porra desse telefone e liga pra ela. Fala que você tá confuso, que tá com medo de se entregar. Mulher adora ouvir essas coisas, fica sensibilizada, promete até ser mais cuidadosa!
-Tá, mas e se eu me fuder de novo? Você vai bancar o uísque da dor de corno?
-Banco, sim, Black Label, ok?
-Tá bem, vou pensar com carinho nessa situação.
-Mas pensa rápido, senão outro gavião tem a mesma idéia antes de você. Aí, babou...

Depois da conversa, cada amigo foi pro seu lado, a refletir sobre as vicissitudes do coração. Não se sabe ao certo se o moço vai ligar pra moça que deixa ele de pau duro só com a voz.

Porque em terrenos como esse, toda a areia é movediça, e toda sintonia, delicada.
Certo mesmo, só o medo de amar.

Poesia para cegas

-Você viu o cara que botou a mulher na justiça porque ela quebrou o pau dele?
-Como assim? Pau não tem osso...
-Não tem, mas, ainda assim, pode dar uma espécie de destroncada...
-Ah tá! Pior é que pode mesmo...
-Chato, né?
-Super! Mas e aí? O cara ganhou?
-Nada, o juiz disse que ele sabia a situação na qual estava se metendo!
-Literalmente, né!
-Pois é, mas sabe que essa história me fez refletir a respeito do assunto?
-De fato, é uma bela temática.
-Fiquei pensando sobre as coisas que são ditas pelos homens quando eles estão de pau duro...
-Tipo o quê?
-Ah, coisas que nos fazem sentir espetaculares e únicas...
-Mas nós somos espetaculares e únicas, alguém duvida disso?
-A questão não é essa.
-Qual é então?
-Ah, fico às vezes achando que precisamos de um homem para validar nosso apreço por nós mesmas.
-Pára de show, vai! Você deve estar numa TPM violenta...
-Pior é que devo menstruar amanhã ou depois...
-Viu? Quase tudo na vida são os hormônios.
-Tá, mas e se tirarmos os hormônios? Não sobra nenhum sentimento?
-Querida, deixa esse papo de sentimento pra discutir com o seu terapeuta! Eu não tenho cacife pra isso!
-Se duvidar, nem ele tem!
-A questão é: independente do que aconteça entre quatro paredes, temos que estar cientes de que, nessas circunstâncias, o que se diz nem sempre é o que se diz e o que se ouve nem sempre são só palavras...
-Interessante isso...
-A cama nada mais é do que um território com múltiplos significados.
-Poxa, vou dormir pensando nisso!
-Faz isso não! Dorme pensando no Gianechinni, que é mais jogo!

Até tentou pensar no gostoso do Gianechinni antes de dormir, mas não deu. O buraco, definitivamente, era mais embaixo. Mais fundo que os hormônios. Mais perto, portanto, dos sentimentos e das emoções. Queria era descobrir os meandros do misterioso processo que começa na cama e termina nas profundezas de cada um de nós. Estava era tentando enxergar no escuro. Mesmo sabendo que, molhada, toda mulher é uma cega.

E de pau duro, todo homem, um poeta.

Candice e Luelane

Candice e Luelane se encontram uma vez por semana para ver filmes melífluos. Como são estudantes de cinema, preferem não sair por aí comentando que gostam de comédias românticas previsíveis, pra não gerar conflitos inflamados. Imagina se o povo da facu descobre que aquelas duas se enchem de rufles, ferrero rocher, itaipavas e cocas zero só pra ver o casal protagonista se beijando e indo pra cama por amor (porque em filmes como esses as trepadas casuais simplesmente não fazem parte do roteiro).

Porém, durante as sessões, a sinceridade come solta:

-Só não entendo esse pezinho que as mulheres levantam na hora do beijo, cara.
-Sabe que outro dia eu estava pensando nisso e cheguei à conclusão de que a gente às vezes levanta um pezinho nessas horas!
-A gente não, cara pálida! Eu nunca fiz isso, é muito fake!
-Pois eu de vez em quando pago um pezinho básico, em momentos de emoção extrema.
-Jura?
-Pior é que juro!
-Acho que a gente no fundo é masoquista de ver essas paradas.
-Por que?
-Ah, isso é coisa pra mulher que acredita que vai encontrar um carinha maneiro que quer algo além de uma noite e nada mais...
-Vai dizer que você perdeu toda a esperança?
-Se a esperança é a última que dorme, a minha tá na sonoterapia faz tempo...
-Ai, pára com isso, neguinha, tem muito cara interessante por aí
-De repente até tem, mas cansei de procurar.
-Cansou nada! E aquele rapaz que você conheceu na festinha do Odeon?
-Pegou meu telefone e ligou dizendo que ia me ligar de novo.
-E?
-E nada, né?
-Mas por que ligou então?
-Eu vou lá saber?
-Pode ter acontecido alguma coisa...
-Ah, com certeza! O cara liga dizendo que vai ligar de novo e morre atropelado por um caminhão de Cheetos! Gostei do roteiro, vamos filmar? Capaz de ser super premiado nos festivais da França!
-Não seja tão amarga, amiga!
-É, vamos esquecer esse papo! O que tiver de ser será, que nem em “Harry e Sally”, que eles se comem, ela fica amarradona, ele pira, ela se sente objeto e, só depois dela sumir, ele percebe o quanto a ama.
-Da última vez que eu sumi assim, quando voltei, já tinha outra na situação...
-Acho que tá na hora de ir pra rua, gata, parar com essa história de filme, que isso não tá levando a gente a nada.
-É, cinema é o maior zero a zero!

E assim, desiludidas e empanzinadas, as amigas foram pra night e, como de hábito, nada encontraram que valesse a pena. Voltando pra casa, já de manhã, não resistiram e passaram na locadora. Pegaram “O sétimo selo”, para se sentirem densas, porque a porra da pós-modernidade já tinha cansado suas belezas.

E porque a inveja de suas avós, que tinham o mesmo homem a vida toda a comer-lhes o rabo, era infinita.

Carta bem-humorada para uma tristeza sem fim

Querido Marcos Frango,
Desde que soube que nunca mais ouviria nenhum comentário sarcástico vindo de sua boca, o mundo parece que perdeu um pouco da graça. É claro que os dias bonitos serão sempre bonitos, que a cerveja gelada permanecerá dando alento às almas trôpegas e que uma boa dose de sexo selvagem continuará aliviando as dores na coluna de 90% da humanidade. Ainda assim, mesmo que esteja tomando uma gelada num puta dia de sol, ou esteja fudendo como uma golfinha depravada, sempre que tocar “Paixão Antiga” do Tim Maia chorarei por ti, meu amigo, não só por não ter tido a coragem de ir ao seu enterro, nem por não ter te mostrado meus filmes, mas, principalmente, por não ter te agradecido por tudo que você me ensinou ao longo dos anos de UERJ. Mas, porra, como é que alguém podia adivinhar que uma merda desse tamanho ia acontecer? Eu pensava que ia te encontrar no carnaval, no bloco que o Érick é mestre de bateria, acompanhado da tua mulher e da tua filhinha, toda fantasiada de fada. Lembra quando você conheceu a Mônica e imediatamente me tomou como sua confidente? Ligava pra contar a evolução dos fatos e eu, muito orgulhosa do meu amigo, te dava conselhos que, de tão óbvios, deviam ter sido ouvidos por mim mesma, a fim de ter dado menos cabeçadas de encontro à parede. Você nunca soube o que era isso. Conheceu sua alma gêmea e foi preciso como um artilheiro em decisão de campeonato. Por ser assim, tão irritantemente focado, de vez em quando dizia que eu era uma pessoa muito teórica (coisa que me irritava naquela época e que agora soaria como um blues dos irmãos Gershwin). Por ser assim, tão absurdamente íntegro, às vezes me assoberbava com tanta coerência. O fato é que, de todos os meninos com quem andava (sim, porque eu era a única garota no meio de um bando de brilhantes intelectuais que me servem de referência até hoje), você era um dos poucos que realmente absorvia as inquietações da artista, que, de fato, acabei me tornando. Outro dia, de tanta saudade, sonhei contigo. Pra variar, você tinha que me dar aquela zoada básica:

-Poli, quanto tempo! Como vai essa vida de cineasta?
-Vai indo, mó ralação, não tenho horário pra nada, garantia de porra nenhuma!
-Tá reclamando de quê? Queria tá dando aula em escola?
-Claro que não, não nasci pra isso!
-Mas teria dado uma boa professora! Agora me diz uma coisa, e aquele seu orientador da UFF, comeu?
-Nossa, a gente não se vê há muito tempo mesmo. Aquele cara era viado, acredita?
-Acredito! Vindo de você, qualquer coisa pode ser verdade!
-Pára de me zoar, caralho, que eu tô com mó saudade!
-Eu também! Aliás, ando sumido mesmo, com saudade de todo mundo.
-Você faz muita falta!
-Eu sei! Mas não acabou não!
-Ué, pensei que você tinha estourado seu tempo regulamentar...
-Esquenta não, vamos todos nos ver na prorrogação.
-Mas você tá bem?
-Claro que tô! Olha, querida, o papo tá bom, mas tá na minha hora! Vê se começa a fazer uns filmes sobre futebol!
-Vou pensar no seu caso!
-Mas antes tem que aprender a identificar um impedimento!
-Engraçadinho...

Ao acordar, cheguei a sentir o cheiro da esperança, como quando a gente é criança e pede bicicleta pra Papai Noel. Fiquei um tempo tentando voltar a dormir pra continuar nossa conversa. Mesmo agora, depois de tanto tempo, ainda poderia identificar o timbre de sua voz, terna sem deixar de ser severa, suave sem deixar de ser firme. Se sua voz pertencesse ao reino dos alimentos, seria tipo aquele molho acridoce, que tem no chinês. Mas já que seu timbre não é mais possível, ficamos por aqui, na árdua tarefa de medir o tamanho do buraco que você deixou. A sensação é a de que nunca conseguiremos precisar a magnitude dessa profundidade. É sempre assim com os grandes homens. Mas a herança é tão profunda quanto a lacuna. Disso você pode ter certeza.

A saudade é grande, meu querido. E o prazer da convivência, nem preciso dizer, foi imenso.
Olha pela gente aí!
Beijo grande,
Poliana.

PS: Zânia, Vitor e Carlão tiveram seus rebentos há pouco, mas ainda não conheci a gurizada. Só por foto.

Pussy designer

Depiladoras têm em comum o fato de lidarem com aquilo que, nós, meninas, assumindo ou não, temos de mais precioso: nossa flora vaginal. Coisa linda que mamãe passou tubos de hipoglós e que nós, com a vida adulta, passamos de tudo um pouco, na tentativa de achar o convexo que se encaixe perfeitamente em nossa côncava anatomia. Parece simples, mas nem sempre as coisas dão tão certo assim. Foi o caso dessa amiga minha, cujo nome foi trocado, para evitar identificações comprometedoras.

Francis é loira do pentelho preto e sempre depila cavada, pra eliminar atritos desnecessários. Costuma fazer visitas trimestrais àquela que tem a responsabilidade de prepará-la para fodas cheias de auto-confiança: Janine, sua personal pussy designer. Porém, lá chegando, soube da triste notícia de que a moça estava com dengue, impossibilitada de trabalhar por uns 10 dias. Como tinha compromissos intra-aeróbicos marcados para aquela noite, achou por bem aceitar ser atendida por uma substituta, não sem antes dar-lhe todas as especificações necessárias:

-Olha, querida, é cavada, mas, pelamordedeus, sem bigodinho de Hitler, hein?

O olhar condescendente de quem sabia muito bem o que estava fazendo fez com que Francis confiasse imediatamente em Estefânia, a substituta. Durante a sessão, como de hábito, surge toda a sorte de conversas para evitar o constrangimento natural de ter uma ser humana manipulando dolorosa e impiedosamente a tal preciosidade que mamãe encheu de hipoglós:

-Menina, você viu aquela moça da novela, que se pendura no mastro?
-Flávia Alessandra, né? A ex do Marcos Paulo.
-Essa mesmo. Outro dia vi uma entrevista dizendo que ela só tirou a roupa na novela porque já é uma atriz madura. Engraçado, né? O normal é o pessoal tirar a roupa primeiro e só depois ir pra novela.

Francis, que é estudiosa de fenômenos midiáticos, empolgou-se com Estefânia e até se esqueceu da situação em que se encontrava. Terminado o serviço, antes de fazer buço, axila e sobrancelha, olha pra baixo e vê que o nazismo havia triunfado. Com ódio, lança chamas viperinas:

-Mas o que é isso, minha filha? Eu não falei que não era pra fazer bigodinho?
-Mas não tá bigodinho, não senhora, bigodinho é mais fino, ta só cavada normal.
-Normal? Você sabe que eu tenho um encontro hoje? Como vou me apresentar assim, descaracterizada?

Depois de muito bradar e ameaçar chamar seu advogado, saiu de lá sem pagar o serviço. E, já que não havia jeito, resolveu adquirir artefatos para acompanhar o novo design. Assim, de chicotinho e algemas em punho, assumiu a linha extrema direita e até que se divertiu bastante.

Em seu íntimo, agradeceu Estefânia, por liberar um lado autoritário que ela mesma desconhecia.

Era o mínimo que se podia esperar quando a última coisa que se esperava tinha acabado de acontecer.

Acontece (parte 2)

-Ele respondeu meu email.
-E aí? A raiva passou?
-Tá tudo certo em relação a isso.
-Que bom, amiga! Nada mais de culpa! Viu como era coisa da sua cabeça?
-É...
-É impressão minha ou você tá bolada?
-Na verdade tô um pouco chocada ainda com o teor das coisas que ele disse...
-Por que?
-Resumindo, pra não gastar minha beleza e nem desmanchar meu penteado, o mancebo disse que estava tudo bem, que eu poderia ligar pra ele e mandar email sempre que quisesse, que ele não estava chateado e que até poderíamos nos encontrar.
-Isso é legal, né? Vocês não estavam justamente combinando de se ver antes de rolar esse stress do acidente?
-Pois é, mas tá faltando o grand finale...
-Fala!
-Ele pediu pra que eu, por gentileza, evitasse o orkut, pois ele está enrolado com uma pessoa.
-Gente, que cara-de-pau!
-Ainda não terminou.
-Jesus...
-Ele disse que, caso isso fosse um impeditivo, ele entenderia.
-Que compreensivo...
-Caso não, eu poderia me sentir à vontade para procurá-lo.
-Gente, tô pretérita! Quer dizer que se você topasse, poderia dar umas reboladas no pau dele, desde que não deixasse nenhum recadinho no orkut, pra patroa não ver?
-Exatamente!
-Que precavido...
-Aff!!!!
-Amiga, na boa, esse cara tá pensando que é o Brad Pitt! Tomou prozac além da dose...
-O fato dele estar enrolado com outra é até normal, eu também não sou nenhuma santa.
-Pois é, você também não deixa barato, quando resolve dar de titia feroz, ninguém segura!
-Só você pra me fazer rir numa hora dessas...
-E tem outro jeito?
-O pior pra mim foi essa coisa do orkut, me senti meio alcatra, sabe?
-Sei bem...
-Precisava ver, da última vez que nos falamos, era “lindinha” pra cá, “pensei em você a semana toda” pra lá...
-Posso imaginar como você tá se sentindo...
-Fiquei chocada não só por ele, não, mas pela mina também. Nesse ponto sou corporativista, não vou entrar numas sabendo que tem uma mulher sendo enganada. Porra, podia ser comigo!
-Aqui, não responde essa porra desse email não!
-Vou responder não, amiga, fica fria. Agora atingiu meus brios!
-Claro! Tá pensando o que? Que é a piroca mais sensacional do mundo?

O silêncio que se fez deu bandeira da anatomia do anti-herói em questão.

-Fala logo, como é?
-Parece um cogumelo.
-Cabe na boca?
-Sobra!
-Na espessura também?
-Aham...
-Ahhhhhhhh! Agora tudo se encaixa...
-Na verdade, não se encaixa, né, querida!
-Pensa assim, bela, agora pelo menos você vai poder falar de boca cheia!

Morrendo de rir da própria desgraça, as amigas ficaram a discutir as proporções dos membros dos rapazes que por elas passaram e chegaram à conclusão de que, se em terra de cego quem tem um olho é rei, em terra de bem dotado, quem tem caráter é digno de segredos de liquidificador: desses bem batidos, com ovos, à moda espanhola.

Acontece

-Ele não vai te responder, esquece.
-Mas como assim?
-Não vai, não adianta, você pode mandar mais uns quinze emails e ele vai continuar te ignorando.
-Mas por que? Não seria mais fácil ele simplesmente me responder, nem que fosse com um: “Olha, eu tô ótimo, me recuperei do acidente, mas, sinceramente, quero que você se foda!”
-Você realmente ia gostar de ouvir isso?
-Sei lá, cara, talvez me sentisse menos culpada, menos escrota, menos qualquer porra! Nunca me senti tão impotente assim!
-Baby, é triste, mas vale a máxima de que pra tudo tem sempre uma primeira vez.
-Preferia ficar virgem nesse setor...
-Olha, eu bem que queria te dar um colinho, mas ando tão vazia de esperança e de sentido que nem sei o que te dizer, amiga.

A tristeza era tão negra que, sem que ninguém pedisse nada, um vinil do cartola começou a tocar no velho três em um da casa nova das meninas.

-Cartola é foda, né?
-Outro dia um amigo me disse que ele é o padroeiro de todos os que preferem sentir raiva à culpa. Achei bonito.
-É. Mas por que a culpa dói tanto?
-Porque é nossa responsabilidade, única e exclusivamente nossa.
-É.
-Porque é pessoal e intransferível.
-Como um cheque ao portador.
-Como um cheque ao portador.
-E se eu ligar pra ele?
-Lindinha, desiste.
-Ai, não fala lindinha, que ele me chamava assim...
-Belíssima, não tem nada que você possa fazer. Vida adulta é assim mesmo: irreversivelmente cruel.
-Pelo menos temos cerveja...
-Gelada!
-E tá chegando fevereiro...
-Viu? Nem tudo está perdido!

Continuaram ali, ouvindo Cartola até altas, e a esperança, cansada de tanto esperar, guardou-se pra quando o carnaval chegar.

Distância de segurança

Anderson e Fernanda se conhecem há bastante tempo e fazem um monte de coisas juntos, na maior amizade. De umas festas pra cá, no entanto, provavelmente por conta dos hormônios, ele começou a achar natural friccionar seu corpo no dela na pista de dança. Já ela, por sua vez (provavelmente também por conta dos hormônios), curtiu essa coisa moderna de se esfregar no amigo.

Passadas umas seis festas, o paradoxo já tinha se estabelecido: Anderson continuava como sempre esteve, enquanto Fernanda jazia úmida em seu quarto a cada vez que se lembrava daquela animação toda. Como a situação exigia um terceiro olho, chamou uma amiga pra dar o veredicto:

-Já sei o que está acontecendo!
-Então me diga!
-Ele te acha cheirosa, admirável, gente fina, gostosa e se amarra na tua companhia, né?
-Acho que sim.
-Mas não tem vontade de te comer, filha, esquece!
-Será?
-Baby, veja as coisas como elas são de fato e não pela ótica da Cinderela, ok?
-Tá, mas acho estranho esse comportamento. Não vejo ele fazer isso com nenhuma outra amiga...
-Estranho é, sem dúvida! Senão uma garota tão bem comida como você não estaria assim, à flor da pele...
-Pois é, menina, que situação!
-Se ele quisesse, já teria rolado, bela.
-Às vezes fico achando que ele pode sentir medo de mim, me achar muita areia pro carrinho de mão dele. Sabe como é, mal ou bem, sou uma intelectual...
-Pode ser também, mas sei lá, homens costumam agir, mesmo estando apavorados. É a lei da selva!

Concordando em gênero, número e grau com a amiga, Fernanda sacou aquilo que já estava muito claro: o moço tinha um jeito peculiar de se expressar. E só. Sacou também que, de agora em diante, para manter sua amizade com ele, teria que partir para uma tomada delicada de atitudes. Sem perder a ternura, obviamente.

Porque alguns homens são como caminhões: demandam uma certa distância de segurança.