segunda-feira, 31 de março de 2008

A parada hetero

Estava eu a trabalhar numa mostra no CCBB, vendo se o tempo passava de forma menos tediosa, quando encontro um rapaz que estuda cinema na UFF. Na verdade, quando ele entrou na faculdade eu já estava de saída, portanto, nem somos muito amigos, apenas colegas. Desta forma, nossa conversa nada mais é do que um show de amenidades, uma coisa simpatia é quase amor, bem comum em nosso meio. Só que dessa vez foi diferente. Não sei bem por que, mas o moço levantou questões bastante elucidativas da angústia do macho heterossexual pós-moderno.

-Por que você não foi à chopada ontem?
-Ah, porque quase não conheço mais ninguém da UFF. Além do mais, tô aqui na mostra, sabe como é, trabalhar de ressaca não rola...
-Claro, claro.
-Mas e aí? Tava legal?
-Mais ou menos
-Cerveja quente?
-Que nada, a cerveja tava gelada, o problema é que as meninas também...
-Jura? Poxa, na minha época o bicho pegava, era uma carnificina louca!
-Bons tempos...

Sem querer tirar minha oxítona terminada em u da reta, eu tenho lembranças (e amnésias) ótimas das chopadas, aliás, eventos essenciais dentro de um curso de graduação, onde interiores se revelam, namoros começam e filmes se queimam, exatamente nessa ordem.

Assim sendo, resolvi dar corda pro moço, pois senti que sua aflição era real.

-Mas não tinha nenhuma menina assim mais animada?
-Não.
-Será que você não está sendo muito exigente?
-Pior é que não! Eu estava mais do que facinho, mas ninguém se comoveu com minha macheza...
-Sei, posso te perguntar uma coisa?
-Claro.
-Você costuma citar filósofos em suas cantadas? Porque isso ninguém merece, né?
-Claro que não!
-Vou ser bem franca com você: pra mim, homem que leu Foucault demais não dá em boa coisa...
-É, nem pensar, fica micropoder pra lá, vigilância pra cá. Melhor não!
-Com certeza! Mas então qual será o problema?
-Você quer mesmo saber? Não vai me achar um machista recalcado?
-Diga lá!
-Acho que as meninas estão preferindo a companhia de meninas. Nós, homens heterossexuais, fazemos parte de uma minoria excluída. Inclusive, estou pensando em fazer uma parada do orgulho hetero, o que você acha?
-Hahahahahahahahaha! Orgulho hetero! Incrível!
-Sério, minha idéia é organizar um esquema bem bacana, criar um símbolo, ter uma bandeira e tudo o mais! Você me ajudaria?
-Sim, só temos que tomar cuidado pra não parecer coisa de gente reacionária, que prega a heterossexualidade em detrimento da diversidade.
-É mesmo, nem tinha pensado nisso...
-Mas a idéia é interessante, é só mesmo se ligar que a questão é delicada.
-Claro!
-E pode contar comigo, tô contigo e não abro!
-Poxa, até me animei agora, obrigado pela força!
-Que nada, disponha.

O colega foi embora e eu me senti uma pessoa melhor em poder ajudar. Afinal, até já perdi a conta de quantos homens sexualmente confusos passaram por mim e acabaram virando minha cabeça pelo avesso. É muito estranho se sentir minoria, ainda mais se o que gostamos é tido como “normal”. Mas, por outro lado, é sensacional perceber que o mundo está girando numa velocidade que não podemos mais controlar.

E que a liberdade, de tão livre, está sempre a nos criar novas prisões.

domingo, 23 de março de 2008

O tatame da implicância

-Ai, amiga, todo cara interessante que eu conheço, é sempre a mesma coisa.
-Dá pra ser mais específica?
-Ah, aquele velho esquema...
-Que esquema?
-Conhece, dá uns beijos, saca a pegada, dá o telefone, adiciona no msn, vira amiga no orkut, tudo isso em quinze dias.
-Sim, faz parte dessa coisa pós-moderna a velocidade com que as pessoas ficam íntimas.
-É, mas esse negócio de orkut, definitivamente, é o começo do fim...
-Fim do que, guria?
-Ah, fim da poesia, sabe? Por exemplo, esse carinha.
-Qual carinha, o que tem uma filhinha?
-Não, esse aí sumiu pra todo o sempre. Tô falando desse outro, mais recente...
-O que tem hálito de canela?
-Exatamente! Escuta só: ontem fui responder a um recado fofo que ele deixou pra mim.
-E tinha um recado duma gostosona na página dele, né?
-Caraca, como você sabe?
-Porque é um clássico do orkut, querida: a mulher chega, vê um recado da gostosa na página do peguete, vai no álbum dela pra dar aquele confere, vê que a mina é gata mesmo e já começa a ficar paranóica, achando que não é páreo pra esse tipo de potranca. Vejo isso toda dia lá no consultório!
-Pô, mas não é uma situação broxante?
-De certa forma é, mas o buraco é mais embaixo.
-Como assim?
-Quer mesmo ouvir?
-Claro!
-De repente você está construindo uma pessoa que ainda não existe de fato, sabe? Tudo bem, o carinha é interessante, beija bem, tem hálito de canela, te dá uns moles e tal...
-Ele me mandou flores vermelhas na semana passada...
-Legal, muito legal mesmo, a coisa está indo por um caminho bacana, mas veja bem, homem, de uma maneira geral, gosta de saber que tem várias mulheres disponíveis na área, sabe assim?
-Sei bem...
-Isso até ficar completamente envolvido com uma só e querer assumir uma relação a dois, concorda?
-Concordo.
-Portanto, tome o fato do hálito de canela ter potrancas por perto como uma coisa normal.
-Tá, normal é, o cara é solteiro. Mas entende que eu não tenho como competir com esse tipo de coisa?
-Entendo, claro, mas também não dá pra querer que o cara esqueça todas as amigas gostosas só porque há uma semana você apareceu na vida dele!
-Duas semanas! Conheço ele há duas semanas! Mas você tem razão, não dá!
-Vejamos pelo outro lado. No seu orkut deve ter um monte de recado de gatinho, ou não?
-De vez em quando até rola, mas eu corro pra apagar, pra ele não ver.
-Não acredito nisso!
-Ah, não gosto de ficar me exibindo...
-Posso te fazer uma pergunta bem indiscreta?
-Pode.
-Há quanto tempo você não trepa?
-Putz, tenho até vergonha de dizer.
-Tem mais de três meses?
-Por aí.
-Então, acho que isso é falta de sexo, amiga, na boa. Se você der prum homem que saiba o que está fazendo, num instante esse negócio de orkut passa, você vai ver.
-Cansei de sexo casual, já te disse!
-Até entendo seu lado, mas faz com um carinha legal, daí fica uma coisa emocionalmente segura, sabe?
-Sei...
-Não tem nenhum ex que você queira dar uma revisitada?
-Deus me livre!
-E amigo? Não tem nenhum que você queira provar?
-Já comi todos que eu tinha que comer.
-Não sobrou nenhum? Logo você, que anda com tantos homens interessantes...
-Tem aquele menino da faculdade que te falei uma vez, sabe, um que implica comigo o tempo todo?
-Aí, tá vendo? Homem implicante é o máximo! Corre até o risco de tomar umas porradinhas!
-Ai, não me dá idéia que eu me animo...
-Garota, tô aqui pra te animar! Você é a maior gostosa, rabuda, cheia de disposição!
-É, não chego a estar mal na fita não...
-Claro que não, ainda por cima inteligente, mulher de opinião! Fica aí perdendo tempo com recadinho de orkut! Quero ver se essas gurias sabem fazer metade do que você sabe ou se é tudo picolé de chuchu...
-É, vou chamar o implicante pra jogo!
-Chama, bela! E te digo mais: do jeito que você tá, a ponto de bala, é capaz de apanhar bonito...
-Ui, fiquei toda arrepiada agora.
-É, garota, a perspectiva de uma surrinha sempre deixa a gente esperançosa...

Seguindo os conselhos da amiga, a rabuda chamou o implicante pra jogo. Coincidência ou não, nesse mesmo dia, o hálito de canela deixou outro recadinho lindo em seu orkut, ao que ela respondeu sem esperanças rançosas, pois tinha parado de se preocupar com as gostosas de plantão.

O fato é que os hematomas provenientes do tatame da implicância a envaideceram de tal forma que, dali em diante, perto dela, qualquer potranca não passaria de um picolé de chuchu.

Na versão diet, logicamente.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Cenografia à distância

-Há quanto tempo ele se mudou?
-Dois meses.
-E vocês chegaram a ter algo mais assim íntimo?
-Ficamos no estágio 1.
-Como é o estágio 1?
-Vai dizer que você não sabe?
-Querida, tô casada há vinte anos, o único estágio que ouço falar é o do meu filho...
-Filipinho tá fazendo estágio já?
-Casei grávida né, bonita, esqueceu? Meu filho é um homem feito, pagou jantar pra mim outro dia e tudo, quase chorei de emoção, mas conta, como é o estágio 1?
-Ah, muita conversa, simpatia, sintonia, essas coisas...
-Mas o olhar dele te queima?
-Acho que sim.
-Acha?
-Sim, acho, não sou mulher de tantas certezas.
-É, você tem razão, certo mesmo só as contas que vencem no dia 10, mas conta mais!
-Então, ele pegou meu telefone e a gente tem se falado umas três vezes por semana.
-Quem liga?
-Ele.
-O homem faz três interurbanos por semana sem nem ter beijado sua boca ainda?
-Isso mesmo.
-Geeeeeeeeeente! Sen-sa-cio-nal!
-Pois então, a coisa tá esquentando
-Já vi que alguém vai viajar em breve...
-Ele me diz cada coisa que me deixa num estado...
-Ai, que delícia.
-Teve um dia que tomei umas cervejas e começamos a ter uma conversa assim mais quente, sabe?
-Sei, sexo verbal.
-Exatamente.
-Delícia...
-Daí eu disse pra ele que estava toda molhada.
-E ele?
-Continuou me dando corda até eu ficar numa situação extrema, quase subindo ladrilho de tamanco!
-Ladrilho de tamanco?
-É, explodindo.
-E ele?
-Disse que também estava do mesmo jeito.
-Deus queira que ele não suba ladrilho de tamanco, porque aí poria tudo a perder...
-Não faz gracinha que é sério!
-Tá bem, mas fiquei imaginando o bofe de tamanco e confesso que não foi o melhor pensamento do dia.
-Quer deixar eu terminar de falar?
-Deixo, lindinha, claro!
-Ontem ele veio me dizer que não fica assustado com essas coisas que digo.
-Que ótimo, ponto pra ele! Homem assustado cansa.
-É, mas ele acha que o que eu digo no telefone não é verdade.
-Como assim?
-Ele diz que eu minto por estilo, que minha umidade é cenográfica, que eu fabulo para envaidecê-lo e que, por isso mesmo, ele gosta.
-Nossa! Umidade cenográfica é coisa fina!
-E ainda culminou com a seguinte frase: “como pode querer que a mulher vá viver sem mentir?”
-Adorei esse rapaz, ele arrasou!
-Mas ele não acredita em mim!
-Ele tá querendo te conhecer, amiga, daí diz essas coisas, pra te fazer pensar nele mais e mais. Coisa de homem, aproveita!
-Tá bem.
-Você tá acostumada a ter todas as respostas, né?
-É.
-Então deixa virem as perguntas difíceis, bonita, sem medo!

Ficou pensando nas perguntas escabrosas e nas respostas elaboradas que viriam pela frente. E só então percebeu que em breve comprará uma passagem pra longe de casa e pra dentro de si mesma, em busca de uma cenografia que, de tão bem encenada, pareça real.

E que, de tão real, pareça encenada.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Dicas práticas para nao queimar o filme do gênero feminino numa só noite

Bons rapazes ainda há, ao contrário do que reza a lenda urbana pessimista de nossos tempos. O que está em falta, de fato, é o critério. Esse sim, se estivesse à venda, já teria esgotado há muito. Os pés são a todo instante trocados pelas mãos e as chances de ficar em silêncio, violentamente desperdiçadas. Diálogos deprimentes costumam rondar aquelas horas constrangedoras que se seguem ao sexo casual, geralmente prematuro e não muito gostoso, diga-se de passagem. Um amigo que não direi o nome me contou umas histórias impressionantemente desesperadoras. Pra começar, cabe ressaltar que esse amigo é pitéu, além de talentoso e carinhoso, atributos que o colocam no topo da lista de muitas meninas. Algumas até conseguem dar pra ele. Porém, poucas deixam marcas para além de unhadinhas frívolas. Poucas foi gentileza minha. Nenhuma conseguiu deixar qualquer marca que valesse a lembrança, pra ser mais precisa e menos benevolente (que não estou aqui pra passar a mão na cabeça de mulher que acha que um par de peitos durinhos e uma bucetinha molhada dão conta do recado de ser algo além de uma boneca inflável com pinta de intelectual). Nenhuma, apesar da evolução do pensamento em torno da causa feminina, conseguiu fazer o serviço completo, que na minha época era chamado de barba cabelo e bigode. Não conseguiram e não conseguirão, enquanto se fiarem na encenação e na pseudo-putaria. E, principalmente, enquanto estiverem mergulhadas nas profundezas da falta de assunto.

Agora vamos aos fatos:

. Capítulo Primeiro: Da hidratação

-Tem água na sua casa?
-Sim, claro.
-Você pegaria pra mim? Fico sem jeito de abrir sua geladeira...

Depois de abrir as pernas e deixar a mangueira entrar, esse papo de não abrir a geladeira soa como uma anti-metáfora. Algo que transita entre os dois pesos e as duas medidas.

Dica prática: Parta sempre do pressuposto de que na casa das pessoas tem água potável.

. Capítulo Segundo: Do transporte.

-Você tem telefone de alguma companhia de táxi?
-Sim, claro.
-Teria como ligar pra mim?
-Tem alguns números presos na geladeira.
-Ai, pega pra mim? Fico sem jeito de entrar na sua cozinha...

Mais uma vez a falta de jeito aparecendo como fator determinante.

Dica prática: Ande com telefones de companhias de táxi no celular e pare com esse charminho de artista em fim de carreira.


Capítulo Terceiro: Do preservativo

-Você tem camisinha, né?
-Sim, claro.
-Poderia colocá-la?
-Se você esperar meu pau terminar de ficar duro...

Uma mulher que não conhece o grau de paudurescência necessário para a inserção da camisinha é capaz de acreditar que beijo na boca engravida.

Dica prática: Pau duro não tem esse nome à toa. Encoste e veja por você mesma.

Capítulo Quarto: Da necessidade de provar que não se é burguesa.

-Você gosta de samba?
-Sim, claro.
-Já foi na feijoada da Portela?
-Nunca fui.
-Ai, como você faz isso com você mesmo? Lá é que é samba de raiz, samba de verdade.

Tá bem! Quero ver dançar com os bebuns suados de Madureira sem ficar com nojinho nem medo de ser estuprada.

Dica prática: Quando quiser tirar onda com o gatinho, esqueça o samba. É óbvio demais.

Haveria outros capítulos, mas só esses quatro já me irritaram o suficiente. Porque esse tipo de comportamento denigre anos e mais anos de luta pela liberação sexual e pelos direitos da mulher.

Portanto, se você é ingênua, não pose de puta. Porque ser puta não é pra qualquer uma. Seja você mesma, aí, quem sabe, até sua inexperiência vai ser charmosa.

Mas, por favor, de manhã, depois de um sexo meia-bomba, fique em silêncio.

Guarde seus comentários pras amigas da facu. Elas estão mais acostumadas com isso.

O pilates de Lisandra

Lisandra anda meio cheinha e resolveu voltar a praticar esportes. Começou com as caminhadas matinais, que lhe fazem muito bem, pois a deixam mais bem disposta para encarar o tranco do trabalho, mas ainda lhe faltava algo. Foi quando encontrou Alícia, sua amiga de escola, que sempre foi aquele tipo meio sem tônus, quase flácida. Pois aquela Alicia tinha ficado pra trás, dando lugar a uma deusa grega. Lisandra quase não a reconheceu na rua. Após o estranhamento inicial, travou-se um desabafo frenético, quase coisa de gente bipolar:

-Poxa, mas você está ótima! Nem te reconheci...
-É, né? Nem parece a velha Alicia! Quer saber meu segredo?

Lisandra, enlouquecendo por dentro, mas não querendo dar pinta de invejosa, finge que nem é com ela:

-Ah, querida, essas coisas não se contam....
-Contam, sim, besteira, quero mais é que todo mundo fique gostosa. Afinal, o que é meu tá guardado, né não?
-Isso é verdade, que bom que você pensa assim!
-Então, menina, tudo começou quando descobri que tinha uma hérnia na coluna lombar, queriam até me operar, olha que horror, logo eu, que só de entrar em hospital tenho taquicardia!
-Jesus...
-Pois é, fiz um exame bizonho, desses que te colocam dentro de um tubo, sabe? Olha, pra você ter uma idéia, tiveram que me dar bola preu parar quieta!
-Gente...
-É, isso é só o começo, tá com tempo?
-Tô.
-Ótimo. Daí passei por um monte de ortopedistas, que ficavam vendo meus exames e dizendo que a coisa estava preta e coisa e tal.
-Nossa...
-Pois é. Pra resumir, chegaram à conclusão de que eu tinha que fazer RPG, que era melhor que operar. Fiquei uns 3 meses nessa. Do RPG, me recomendaram aulas de alongamento e pilates. Foi aí que tudo começou a mudar na minha vida.
-Com o pilates?
-Sim, a coisa é impressionante! Vou te dar um exemplo: sabe quando a bunda começa a diminuir antes de cair de vez?
-Sei bem, isso está acontecendo comigo agora.
-Então, é exatamente essa a hora de começar o pilates! Veja bem, a bunda que já diminuiu, não tem mais jeito, paciência! Mas a indefectível, temida e lastimada queda definitiva é interrompida, ou pelo menos adiada por alguns anos, não é fantástico?
-Ah, Alicia, fala sério!
-Eu estou dizendo, acredite em mim, você sabe que eu nunca fui a mais gostosa da turma!

O silêncio que se seguiu foi a resposta mais contundente que Lisandra poderia ter dado à velha amiga de adolescência. Mas, realmente, essa história de fazer a nádega reagir à gravidade lhe interessava. E muito. Afinal de contas, estava começando a namorar um rapaz e ainda não tinha tido a coragem de ir à praia com ele por puro medo do mais chauvinista de todos os hábitos masculinos: o teste da areia.

-Prossiga.
-O lance é simples, tá com tempo mesmo?
-Estou.
-Vamos comigo agora lá na minha academia fazer uma aula experimental, que tal?
-Agora?
-Sim, te empresto uma bermuda, ando sempre com uma extra.
-Tá bem, vamos!

Lisandra até tinha compromissos bem importantes, mas resolveu desligar o celular e simular um imprevisto qualquer, pois entendeu aquele encontro com sua colega de ginásio como coisa do destino.

Nunca contou esse episódio a ninguém. Simplesmente matriculou-se na academia e, duas semanas depois, já estava indo com seu gatinho à praia num fim de tarde. É claro que não houve tempo hábil para o pilates se fazer agir, porque milagre é coisa mais difícil de acontecer.

Mas pelo menos a gravidade parou de agir em sua auto-estima.

O medo de amar

-E aí, cara, beleza?
-Beleza.
-Como é que tá essa força?
-Tudo tranqüilo e você?
-Também, tranqüilão.
-Legal, e a Laurinha, tá bem?
-Tá, sim, cada dia mais linda.
-Pô, tô com a maior saudade dela, vamos marcar de vocês irem lá em casa dia desses.
-Claro, vamos sim!
-E com a mãe dela, tá tudo certo?
-Tá sim, ontem mesmo dormi lá.
-Ah é?
-No sofá, cara!
-Tá certo, viva a pós-modernidade! Mas, vem cá, e a tal menina que você conheceu, como andam as coisas?
-Indo.
-É?
-Sim.
-Vocês têm se falado?
-Mais ou menos
-Existe isso? Se falar mais ou menos?
-Na verdade a gente não se fala desde o carnaval.
-Por quê?
-Eu liguei pra ela e ficamos de nos encontrar, mas não rolou...
-Por que não rolou? Vocês se desencontraram nos blocos?
-Não.
-Então o que foi?
-Eu fiquei de ligar de novo pra marcar aonde iríamos nos encontrar e não liguei.
-Pô, cara, mas do que você tem medo?
-Porra, mas que saco! Essa é a mesma pergunta que ela vive me fazendo!
-E você responde o que a ela?
-Eu nunca consegui responder.
-Mas pelo menos você sabe do que tem medo?
-Tenho medo de me fuder de novo, eu tenho uma filha, não sou um cara livre e desimpedido.
-Sim, mas ela sabe da Laurinha, né?
-Sabe e acha ótimo.
-Caralho, meu irmão, então qual é a porra do problema?
-É esse poder que eu sei que ela pode vir a exercer sobre mim, não sei se agüento esse tranco agora!
-Mas você não acha que ela tem o direito de saber disso?
-Não, porque daí fico fragilizado diante dela.
-Então, prefere simplesmente sumir, como um moleque?
-Eu não sou moleque, porra, eu tô confuso, assustado, sou um monstro por isso?
-Claro que não! Nem foi isso que eu quis dizer, desculpe!
-Eu simplesmente não consigo pegar o telefone e ligar pra ela. Ainda mais agora, depois de tanto tempo, capaz dela nem querer me atender...
-Se ela não quiser te atender, pronto, você vai saber que não tá rolando mais. Simples assim!
-Nem é tão simples como você fala...
-Cara, eu não te vejo tão inquieto há um bom tempo. Isso pode significar que essa moça toca você de alguma forma, né?
-Porra, só de ouvir a voz dela eu fico de pau duro!
-Então, bicho, vai deixar barato assim? Tá dando mole pro azar, meu camarada! Mulher maneira tem muita, mas mulher maneira que te deixa de pau duro só com a voz é mais raro, fala aí!
-Ô!
-Escuta teu cumpadre aqui, pega essa porra desse telefone e liga pra ela. Fala que você tá confuso, que tá com medo de se entregar. Mulher adora ouvir essas coisas, fica sensibilizada, promete até ser mais cuidadosa!
-Tá, mas e se eu me fuder de novo? Você vai bancar o uísque da dor de corno?
-Banco, sim, Black Label, ok?
-Tá bem, vou pensar com carinho nessa situação.
-Mas pensa rápido, senão outro gavião tem a mesma idéia antes de você. Aí, babou...

Depois da conversa, cada amigo foi pro seu lado, a refletir sobre as vicissitudes do coração. Não se sabe ao certo se o moço vai ligar pra moça que deixa ele de pau duro só com a voz.

Porque em terrenos como esse, toda a areia é movediça, e toda sintonia, delicada.
Certo mesmo, só o medo de amar.

Poesia para cegas

-Você viu o cara que botou a mulher na justiça porque ela quebrou o pau dele?
-Como assim? Pau não tem osso...
-Não tem, mas, ainda assim, pode dar uma espécie de destroncada...
-Ah tá! Pior é que pode mesmo...
-Chato, né?
-Super! Mas e aí? O cara ganhou?
-Nada, o juiz disse que ele sabia a situação na qual estava se metendo!
-Literalmente, né!
-Pois é, mas sabe que essa história me fez refletir a respeito do assunto?
-De fato, é uma bela temática.
-Fiquei pensando sobre as coisas que são ditas pelos homens quando eles estão de pau duro...
-Tipo o quê?
-Ah, coisas que nos fazem sentir espetaculares e únicas...
-Mas nós somos espetaculares e únicas, alguém duvida disso?
-A questão não é essa.
-Qual é então?
-Ah, fico às vezes achando que precisamos de um homem para validar nosso apreço por nós mesmas.
-Pára de show, vai! Você deve estar numa TPM violenta...
-Pior é que devo menstruar amanhã ou depois...
-Viu? Quase tudo na vida são os hormônios.
-Tá, mas e se tirarmos os hormônios? Não sobra nenhum sentimento?
-Querida, deixa esse papo de sentimento pra discutir com o seu terapeuta! Eu não tenho cacife pra isso!
-Se duvidar, nem ele tem!
-A questão é: independente do que aconteça entre quatro paredes, temos que estar cientes de que, nessas circunstâncias, o que se diz nem sempre é o que se diz e o que se ouve nem sempre são só palavras...
-Interessante isso...
-A cama nada mais é do que um território com múltiplos significados.
-Poxa, vou dormir pensando nisso!
-Faz isso não! Dorme pensando no Gianechinni, que é mais jogo!

Até tentou pensar no gostoso do Gianechinni antes de dormir, mas não deu. O buraco, definitivamente, era mais embaixo. Mais fundo que os hormônios. Mais perto, portanto, dos sentimentos e das emoções. Queria era descobrir os meandros do misterioso processo que começa na cama e termina nas profundezas de cada um de nós. Estava era tentando enxergar no escuro. Mesmo sabendo que, molhada, toda mulher é uma cega.

E de pau duro, todo homem, um poeta.

Candice e Luelane

Candice e Luelane se encontram uma vez por semana para ver filmes melífluos. Como são estudantes de cinema, preferem não sair por aí comentando que gostam de comédias românticas previsíveis, pra não gerar conflitos inflamados. Imagina se o povo da facu descobre que aquelas duas se enchem de rufles, ferrero rocher, itaipavas e cocas zero só pra ver o casal protagonista se beijando e indo pra cama por amor (porque em filmes como esses as trepadas casuais simplesmente não fazem parte do roteiro).

Porém, durante as sessões, a sinceridade come solta:

-Só não entendo esse pezinho que as mulheres levantam na hora do beijo, cara.
-Sabe que outro dia eu estava pensando nisso e cheguei à conclusão de que a gente às vezes levanta um pezinho nessas horas!
-A gente não, cara pálida! Eu nunca fiz isso, é muito fake!
-Pois eu de vez em quando pago um pezinho básico, em momentos de emoção extrema.
-Jura?
-Pior é que juro!
-Acho que a gente no fundo é masoquista de ver essas paradas.
-Por que?
-Ah, isso é coisa pra mulher que acredita que vai encontrar um carinha maneiro que quer algo além de uma noite e nada mais...
-Vai dizer que você perdeu toda a esperança?
-Se a esperança é a última que dorme, a minha tá na sonoterapia faz tempo...
-Ai, pára com isso, neguinha, tem muito cara interessante por aí
-De repente até tem, mas cansei de procurar.
-Cansou nada! E aquele rapaz que você conheceu na festinha do Odeon?
-Pegou meu telefone e ligou dizendo que ia me ligar de novo.
-E?
-E nada, né?
-Mas por que ligou então?
-Eu vou lá saber?
-Pode ter acontecido alguma coisa...
-Ah, com certeza! O cara liga dizendo que vai ligar de novo e morre atropelado por um caminhão de Cheetos! Gostei do roteiro, vamos filmar? Capaz de ser super premiado nos festivais da França!
-Não seja tão amarga, amiga!
-É, vamos esquecer esse papo! O que tiver de ser será, que nem em “Harry e Sally”, que eles se comem, ela fica amarradona, ele pira, ela se sente objeto e, só depois dela sumir, ele percebe o quanto a ama.
-Da última vez que eu sumi assim, quando voltei, já tinha outra na situação...
-Acho que tá na hora de ir pra rua, gata, parar com essa história de filme, que isso não tá levando a gente a nada.
-É, cinema é o maior zero a zero!

E assim, desiludidas e empanzinadas, as amigas foram pra night e, como de hábito, nada encontraram que valesse a pena. Voltando pra casa, já de manhã, não resistiram e passaram na locadora. Pegaram “O sétimo selo”, para se sentirem densas, porque a porra da pós-modernidade já tinha cansado suas belezas.

E porque a inveja de suas avós, que tinham o mesmo homem a vida toda a comer-lhes o rabo, era infinita.

Carta bem-humorada para uma tristeza sem fim

Querido Marcos Frango,
Desde que soube que nunca mais ouviria nenhum comentário sarcástico vindo de sua boca, o mundo parece que perdeu um pouco da graça. É claro que os dias bonitos serão sempre bonitos, que a cerveja gelada permanecerá dando alento às almas trôpegas e que uma boa dose de sexo selvagem continuará aliviando as dores na coluna de 90% da humanidade. Ainda assim, mesmo que esteja tomando uma gelada num puta dia de sol, ou esteja fudendo como uma golfinha depravada, sempre que tocar “Paixão Antiga” do Tim Maia chorarei por ti, meu amigo, não só por não ter tido a coragem de ir ao seu enterro, nem por não ter te mostrado meus filmes, mas, principalmente, por não ter te agradecido por tudo que você me ensinou ao longo dos anos de UERJ. Mas, porra, como é que alguém podia adivinhar que uma merda desse tamanho ia acontecer? Eu pensava que ia te encontrar no carnaval, no bloco que o Érick é mestre de bateria, acompanhado da tua mulher e da tua filhinha, toda fantasiada de fada. Lembra quando você conheceu a Mônica e imediatamente me tomou como sua confidente? Ligava pra contar a evolução dos fatos e eu, muito orgulhosa do meu amigo, te dava conselhos que, de tão óbvios, deviam ter sido ouvidos por mim mesma, a fim de ter dado menos cabeçadas de encontro à parede. Você nunca soube o que era isso. Conheceu sua alma gêmea e foi preciso como um artilheiro em decisão de campeonato. Por ser assim, tão irritantemente focado, de vez em quando dizia que eu era uma pessoa muito teórica (coisa que me irritava naquela época e que agora soaria como um blues dos irmãos Gershwin). Por ser assim, tão absurdamente íntegro, às vezes me assoberbava com tanta coerência. O fato é que, de todos os meninos com quem andava (sim, porque eu era a única garota no meio de um bando de brilhantes intelectuais que me servem de referência até hoje), você era um dos poucos que realmente absorvia as inquietações da artista, que, de fato, acabei me tornando. Outro dia, de tanta saudade, sonhei contigo. Pra variar, você tinha que me dar aquela zoada básica:

-Poli, quanto tempo! Como vai essa vida de cineasta?
-Vai indo, mó ralação, não tenho horário pra nada, garantia de porra nenhuma!
-Tá reclamando de quê? Queria tá dando aula em escola?
-Claro que não, não nasci pra isso!
-Mas teria dado uma boa professora! Agora me diz uma coisa, e aquele seu orientador da UFF, comeu?
-Nossa, a gente não se vê há muito tempo mesmo. Aquele cara era viado, acredita?
-Acredito! Vindo de você, qualquer coisa pode ser verdade!
-Pára de me zoar, caralho, que eu tô com mó saudade!
-Eu também! Aliás, ando sumido mesmo, com saudade de todo mundo.
-Você faz muita falta!
-Eu sei! Mas não acabou não!
-Ué, pensei que você tinha estourado seu tempo regulamentar...
-Esquenta não, vamos todos nos ver na prorrogação.
-Mas você tá bem?
-Claro que tô! Olha, querida, o papo tá bom, mas tá na minha hora! Vê se começa a fazer uns filmes sobre futebol!
-Vou pensar no seu caso!
-Mas antes tem que aprender a identificar um impedimento!
-Engraçadinho...

Ao acordar, cheguei a sentir o cheiro da esperança, como quando a gente é criança e pede bicicleta pra Papai Noel. Fiquei um tempo tentando voltar a dormir pra continuar nossa conversa. Mesmo agora, depois de tanto tempo, ainda poderia identificar o timbre de sua voz, terna sem deixar de ser severa, suave sem deixar de ser firme. Se sua voz pertencesse ao reino dos alimentos, seria tipo aquele molho acridoce, que tem no chinês. Mas já que seu timbre não é mais possível, ficamos por aqui, na árdua tarefa de medir o tamanho do buraco que você deixou. A sensação é a de que nunca conseguiremos precisar a magnitude dessa profundidade. É sempre assim com os grandes homens. Mas a herança é tão profunda quanto a lacuna. Disso você pode ter certeza.

A saudade é grande, meu querido. E o prazer da convivência, nem preciso dizer, foi imenso.
Olha pela gente aí!
Beijo grande,
Poliana.

PS: Zânia, Vitor e Carlão tiveram seus rebentos há pouco, mas ainda não conheci a gurizada. Só por foto.

Pussy designer

Depiladoras têm em comum o fato de lidarem com aquilo que, nós, meninas, assumindo ou não, temos de mais precioso: nossa flora vaginal. Coisa linda que mamãe passou tubos de hipoglós e que nós, com a vida adulta, passamos de tudo um pouco, na tentativa de achar o convexo que se encaixe perfeitamente em nossa côncava anatomia. Parece simples, mas nem sempre as coisas dão tão certo assim. Foi o caso dessa amiga minha, cujo nome foi trocado, para evitar identificações comprometedoras.

Francis é loira do pentelho preto e sempre depila cavada, pra eliminar atritos desnecessários. Costuma fazer visitas trimestrais àquela que tem a responsabilidade de prepará-la para fodas cheias de auto-confiança: Janine, sua personal pussy designer. Porém, lá chegando, soube da triste notícia de que a moça estava com dengue, impossibilitada de trabalhar por uns 10 dias. Como tinha compromissos intra-aeróbicos marcados para aquela noite, achou por bem aceitar ser atendida por uma substituta, não sem antes dar-lhe todas as especificações necessárias:

-Olha, querida, é cavada, mas, pelamordedeus, sem bigodinho de Hitler, hein?

O olhar condescendente de quem sabia muito bem o que estava fazendo fez com que Francis confiasse imediatamente em Estefânia, a substituta. Durante a sessão, como de hábito, surge toda a sorte de conversas para evitar o constrangimento natural de ter uma ser humana manipulando dolorosa e impiedosamente a tal preciosidade que mamãe encheu de hipoglós:

-Menina, você viu aquela moça da novela, que se pendura no mastro?
-Flávia Alessandra, né? A ex do Marcos Paulo.
-Essa mesmo. Outro dia vi uma entrevista dizendo que ela só tirou a roupa na novela porque já é uma atriz madura. Engraçado, né? O normal é o pessoal tirar a roupa primeiro e só depois ir pra novela.

Francis, que é estudiosa de fenômenos midiáticos, empolgou-se com Estefânia e até se esqueceu da situação em que se encontrava. Terminado o serviço, antes de fazer buço, axila e sobrancelha, olha pra baixo e vê que o nazismo havia triunfado. Com ódio, lança chamas viperinas:

-Mas o que é isso, minha filha? Eu não falei que não era pra fazer bigodinho?
-Mas não tá bigodinho, não senhora, bigodinho é mais fino, ta só cavada normal.
-Normal? Você sabe que eu tenho um encontro hoje? Como vou me apresentar assim, descaracterizada?

Depois de muito bradar e ameaçar chamar seu advogado, saiu de lá sem pagar o serviço. E, já que não havia jeito, resolveu adquirir artefatos para acompanhar o novo design. Assim, de chicotinho e algemas em punho, assumiu a linha extrema direita e até que se divertiu bastante.

Em seu íntimo, agradeceu Estefânia, por liberar um lado autoritário que ela mesma desconhecia.

Era o mínimo que se podia esperar quando a última coisa que se esperava tinha acabado de acontecer.

Acontece (parte 2)

-Ele respondeu meu email.
-E aí? A raiva passou?
-Tá tudo certo em relação a isso.
-Que bom, amiga! Nada mais de culpa! Viu como era coisa da sua cabeça?
-É...
-É impressão minha ou você tá bolada?
-Na verdade tô um pouco chocada ainda com o teor das coisas que ele disse...
-Por que?
-Resumindo, pra não gastar minha beleza e nem desmanchar meu penteado, o mancebo disse que estava tudo bem, que eu poderia ligar pra ele e mandar email sempre que quisesse, que ele não estava chateado e que até poderíamos nos encontrar.
-Isso é legal, né? Vocês não estavam justamente combinando de se ver antes de rolar esse stress do acidente?
-Pois é, mas tá faltando o grand finale...
-Fala!
-Ele pediu pra que eu, por gentileza, evitasse o orkut, pois ele está enrolado com uma pessoa.
-Gente, que cara-de-pau!
-Ainda não terminou.
-Jesus...
-Ele disse que, caso isso fosse um impeditivo, ele entenderia.
-Que compreensivo...
-Caso não, eu poderia me sentir à vontade para procurá-lo.
-Gente, tô pretérita! Quer dizer que se você topasse, poderia dar umas reboladas no pau dele, desde que não deixasse nenhum recadinho no orkut, pra patroa não ver?
-Exatamente!
-Que precavido...
-Aff!!!!
-Amiga, na boa, esse cara tá pensando que é o Brad Pitt! Tomou prozac além da dose...
-O fato dele estar enrolado com outra é até normal, eu também não sou nenhuma santa.
-Pois é, você também não deixa barato, quando resolve dar de titia feroz, ninguém segura!
-Só você pra me fazer rir numa hora dessas...
-E tem outro jeito?
-O pior pra mim foi essa coisa do orkut, me senti meio alcatra, sabe?
-Sei bem...
-Precisava ver, da última vez que nos falamos, era “lindinha” pra cá, “pensei em você a semana toda” pra lá...
-Posso imaginar como você tá se sentindo...
-Fiquei chocada não só por ele, não, mas pela mina também. Nesse ponto sou corporativista, não vou entrar numas sabendo que tem uma mulher sendo enganada. Porra, podia ser comigo!
-Aqui, não responde essa porra desse email não!
-Vou responder não, amiga, fica fria. Agora atingiu meus brios!
-Claro! Tá pensando o que? Que é a piroca mais sensacional do mundo?

O silêncio que se fez deu bandeira da anatomia do anti-herói em questão.

-Fala logo, como é?
-Parece um cogumelo.
-Cabe na boca?
-Sobra!
-Na espessura também?
-Aham...
-Ahhhhhhhh! Agora tudo se encaixa...
-Na verdade, não se encaixa, né, querida!
-Pensa assim, bela, agora pelo menos você vai poder falar de boca cheia!

Morrendo de rir da própria desgraça, as amigas ficaram a discutir as proporções dos membros dos rapazes que por elas passaram e chegaram à conclusão de que, se em terra de cego quem tem um olho é rei, em terra de bem dotado, quem tem caráter é digno de segredos de liquidificador: desses bem batidos, com ovos, à moda espanhola.

Acontece

-Ele não vai te responder, esquece.
-Mas como assim?
-Não vai, não adianta, você pode mandar mais uns quinze emails e ele vai continuar te ignorando.
-Mas por que? Não seria mais fácil ele simplesmente me responder, nem que fosse com um: “Olha, eu tô ótimo, me recuperei do acidente, mas, sinceramente, quero que você se foda!”
-Você realmente ia gostar de ouvir isso?
-Sei lá, cara, talvez me sentisse menos culpada, menos escrota, menos qualquer porra! Nunca me senti tão impotente assim!
-Baby, é triste, mas vale a máxima de que pra tudo tem sempre uma primeira vez.
-Preferia ficar virgem nesse setor...
-Olha, eu bem que queria te dar um colinho, mas ando tão vazia de esperança e de sentido que nem sei o que te dizer, amiga.

A tristeza era tão negra que, sem que ninguém pedisse nada, um vinil do cartola começou a tocar no velho três em um da casa nova das meninas.

-Cartola é foda, né?
-Outro dia um amigo me disse que ele é o padroeiro de todos os que preferem sentir raiva à culpa. Achei bonito.
-É. Mas por que a culpa dói tanto?
-Porque é nossa responsabilidade, única e exclusivamente nossa.
-É.
-Porque é pessoal e intransferível.
-Como um cheque ao portador.
-Como um cheque ao portador.
-E se eu ligar pra ele?
-Lindinha, desiste.
-Ai, não fala lindinha, que ele me chamava assim...
-Belíssima, não tem nada que você possa fazer. Vida adulta é assim mesmo: irreversivelmente cruel.
-Pelo menos temos cerveja...
-Gelada!
-E tá chegando fevereiro...
-Viu? Nem tudo está perdido!

Continuaram ali, ouvindo Cartola até altas, e a esperança, cansada de tanto esperar, guardou-se pra quando o carnaval chegar.

Distância de segurança

Anderson e Fernanda se conhecem há bastante tempo e fazem um monte de coisas juntos, na maior amizade. De umas festas pra cá, no entanto, provavelmente por conta dos hormônios, ele começou a achar natural friccionar seu corpo no dela na pista de dança. Já ela, por sua vez (provavelmente também por conta dos hormônios), curtiu essa coisa moderna de se esfregar no amigo.

Passadas umas seis festas, o paradoxo já tinha se estabelecido: Anderson continuava como sempre esteve, enquanto Fernanda jazia úmida em seu quarto a cada vez que se lembrava daquela animação toda. Como a situação exigia um terceiro olho, chamou uma amiga pra dar o veredicto:

-Já sei o que está acontecendo!
-Então me diga!
-Ele te acha cheirosa, admirável, gente fina, gostosa e se amarra na tua companhia, né?
-Acho que sim.
-Mas não tem vontade de te comer, filha, esquece!
-Será?
-Baby, veja as coisas como elas são de fato e não pela ótica da Cinderela, ok?
-Tá, mas acho estranho esse comportamento. Não vejo ele fazer isso com nenhuma outra amiga...
-Estranho é, sem dúvida! Senão uma garota tão bem comida como você não estaria assim, à flor da pele...
-Pois é, menina, que situação!
-Se ele quisesse, já teria rolado, bela.
-Às vezes fico achando que ele pode sentir medo de mim, me achar muita areia pro carrinho de mão dele. Sabe como é, mal ou bem, sou uma intelectual...
-Pode ser também, mas sei lá, homens costumam agir, mesmo estando apavorados. É a lei da selva!

Concordando em gênero, número e grau com a amiga, Fernanda sacou aquilo que já estava muito claro: o moço tinha um jeito peculiar de se expressar. E só. Sacou também que, de agora em diante, para manter sua amizade com ele, teria que partir para uma tomada delicada de atitudes. Sem perder a ternura, obviamente.

Porque alguns homens são como caminhões: demandam uma certa distância de segurança.

O cinema nacional

-Quem vai?
-O povo de sempre.
-Veridiana também?
-Claro, mô.
-...
-Vai começar de novo essa história? Quantas vezes tenho que te dizer que a Veridi é minha amiga de faculdade, que não tem mais nada a ver.
-Não precisa dizer nada, baby, eu vejo o jeito que você olha pra ela.
-Claro! A gente viveu muita coisa junto. Pra mim, ela é que nem o Jefferson. Do Jefferson você não tem ciúme, né?
-Lógico! Jeff não te deu chá de buceta durante três anos seguidos.
-Môzinho, eu te amo tanto, não gosto quando a gente discute por bobagem.
-Não é bobagem. Você sabe que eu sou uma mulher que relativiza as coisas. Li todas as feministas, aceito tudo, da bebedeira ao playstation semanal na casa do Romano. Sou praticamente uma companheira perfeita. Mas a Veridiana eu não aturo! Ela nem disfarça! Chega sempre lânguida, decotada e solteira, te contando mil novidades do mundo do cinema. Caguei que ela é cineasta! Caguei pro cinema nacional!
-A sua sorte é que você fica muito tesudinha quando tá com raiva...
-Não muda de assunto, cacete!

Passados trinta minutos de infrutífera discussão, o pragmatismo masculino falou mais alto:

-Tá, diante dessa situação, o que você quer que eu faça?
-Nada.
-Como nada?
-O que você quer que eu te peça? Pra você não falar com ela nunca mais? Logo ela, sua amiga mais famosa, mais talentosa, mais interessante?
-Se você me pedir, eu paro.
-Não vou te pedir isso, não seria justo!
-Também acho, mas se for pra gente parar de discutir, eu até topo, chamo ela pruma conversa e explico tudo. Que tal?
-Aí quem sai de piranha histérica insegura sou eu aqui, a mãe dos seus filhos, que atura seus podres, que fica com o mel e a ferida! Não, obrigada pela oferta! Prefiro continuar fingindo que me interesso pelos filmes que ela faz.
-Os filmes dela são bons, vai!
-Ótimos! Se a pessoa estiver com insônia então...

Para amansar aquela tsunami, só mesmo uma comparação brutal e definitiva:

-Olha, mô, eu jurei pra mim mesmo que nunca cometeria a indelicadeza de falar da intimidade das minhas ex-namoradas com ninguém, mas a verdade é que a gente não rendia muito na cama. Pra você ter uma idéia, nem o boquete dela era gostoso, eu ficava tenso com aquele aparelho dentário, com medo dela me ralar inteiro, de inutilizar meu pau pra todo o sempre.
-E você quer que eu acredite nisso?
-Você acredita se quiser, mas nunca tinha entendido o que era uma buceta esplêndida até te conhecer.
-Buceta esplêndida?
-Quem tem uma personal fucker como você não quer saber do passado.
-Sei...
-É claro que a Veridi é bonita, é gostosa. Me ensinou o que era marxismo e mais valia. Com ela eu trepei pela primeira vez numa barraca de camping.
-Que romântico...
-Naquela época até foi, tudo era novidade.
-Posso imaginar...
-Veridiana tem gosto de juventude. Você tem gosto de vida inteira, entendeu, minha peituda?

A peituda fingiu que não entendeu, pra se fazer de chateada. Tava era valorizando seu passe. Mas, lá no fundo, sua alma se aquietara.

Porque, por mais que o mundo gire cada vez mais rápido, toda mulher quer ter gosto de vida inteira.

O cordeiro defumado

No momento em que Germana roubou o namorado de Veridiana não fazia idéia do que estava por vir. Passados apenas três meses, quando ainda colhia os louros da vitória e sentia-se a mais gostosa das ladras de namorados, recebeu o troco em moeda corrente: o moço teve o displante de trocá-la por outra.

Dia desses, numa pré-estréia para convidados vips, as ex-rivais acabaram se encontrando. A profusão de drinques as fez engatar numa conversa estranhamente íntima:

-Conta mais!
-Ah, ele parecia super bacana no começo.
-Jura?
-Juro, achava ele sensacional, ficava super insegura com a quantidade de mulheres em cima dele, me sentia ameaçadíssima. Afinal, não sou nenhuma musa do verão, né, minha cara!
-Mas isso não quer dizer nada, eu sou o melhor exemplo: perdi 20 quilos, estou ótima, mas fui trocada do mesmo jeito que você!
-Hahahaha! Não adiantou nada tanto diet shake, né?
-Pois é.
-Tô indo pegar outro drinque. Quer também?
-Claro!

Passados quatro drinques e meia dúzia de confissões de gaveta, havia chegado a hora da verdade:

-Um pouco antes da gente terminar, eu já estava meio cansada das amigas dele, que sempre davam um jeito de aparecer sem avisar.
-Isso acontecia comigo também.
-Pois é, para evitar constrangimentos, passamos a dormir mais lá em casa.
-Boa solução.
-Mais ou menos.
-Por quê?
-Você vai achar que eu sou fresca...
-Fala, mulher!
-Bem, o fato é que numa dessas noites os pêlos do tornozelo dele grudaram na colcha de chenile que minha tia-avó me deu.
-É, ele solta pêlos como um gato angorá, mas e daí?
-O tornozelo peludo é só a ponta do iceberg, nem queira saber...

Comovida pela lembrança da tia-avó amada, toma o nonagésimo gole de bebida liberada e, quase por osmose, cospe toda a verdade:

-Quando ele veio com esse papo de que tinha te conhecido e estava apaixonado, achei melhor deixar quieto e não dizer que já estava com nojo daquele tornozelo peludo dele há algum tempo e que achava ótimo ele estar pondo fim na nossa situação.
-E eu achando que tinha roubado seu homem...
-Você ia se cansar dele, menina, vai por mim!
Às gargalhadas, as duas entenderam que o mancebo era um cordeiro defumado em pele de lobo da estepe e que só havia aparecido em suas vidas para fazer delas grandes amigas.

Perceberam tratar-se do clássico desequilíbrio contábil: era muita hora de mulher pra pouco minuto de homem.

Amor que chora

Quando Glorinha era aspirante a atriz, adorava festejar Nelson Rodrigues:

- Ele abusava das bizarrices e não tinha medo do ridículo! Um gênio em estado puro!

Com o tempo, desistiu do teatro. Hoje faz estágio em um jornal e foi escolhida para cobrir a Festa Literária de Paraty. Assim que soube da novidade, reuniu as amigas e foram comemorar à moda carioca, aplaudindo o pôr-do-sol no Posto Nove. Sentia-se a mais competente das estagiárias e chegou a achar que aquelas palmas todas eram só para ela.

- Gente, não tô acreditando! Eu vou cobrir a FLIP logo no ano em que o homenageado é o Nelson. Assim que acabar esse baseado vou pra casa pensar na minha pauta.

O entusiasmo não era à toa. Ali estava sua grande chance, não só pelo tamanho do evento, mas, especialmente, pelo quarto com cama de casal que teria só para ela. Assim que desfez as malas, aprendeu a dividir seu tempo: de dia, pensava em perguntas brilhantes; à noite, arquitetava uma forma de não tomar café da manhã sozinha.

Logo nas primeiras perambulações noturnas, teve medo de virar estatística ortopédica, pois as pedras irregulares de Paraty ameaçavam até o mais estóico dos tornozelos. Movida por pura autopreservação, passou a olhar mais para o chão do que para os meninos, desestruturando drasticamente todo o planejamento feito em prol da paquera.

Decepcionada, entra no primeiro boteco e pede cachaça local. Só então repara no cartaz com uma das inúmeras frases lapidares do homenageado: “Só acredito em amor que chora”. Enquanto aquelas palavras reverberavam em sua bela cabecinha, notou do outro lado da rua um varão de queixo reto, olhar firme e andar levemente claudicante. Tratava-se na verdade de um belo coxo, que sabia fazer poesia, pirão de peixe e surpresas.

Pela primeira vez na vida Glorinha fez sexo sem burocracia e, inteiramente molhada, engoliu em seco todos os preconceitos criados no cativeiro de sua alma classe média bacaninha.

Acabada a festa, na segunda pela manhã, voltou para a redação. A vidinha tinha que continuar, era o único jeito.

Nas curvas da estrada, chorou de molhar o sutiã.

Agora sim tinha cacife para festejar Nelson Rodrigues.

À moda de Jorge

Jorge é filho de costureira e estava acostumado ao constante entra-e-sai de mulheres em sua casa. Desde muito cedo, demonstrava interesse pelas clientes mais frívolas, dessas que só se preocupam em parecer mais magras e mais jovens do que realmente são. Não se sabe bem o motivo, mas ele conseguia fazê-las acreditarem em suas próprias fantasias. Assim, dia após dia, aquele garoto tímido foi se transformando numa criatura ousada e inventiva.

Um belo dia, chega em casa com a novidade:

- Vou fazer vestibular pra Moda!
- Mas tem faculdade disso?
- Mãe, não me mata de vergonha!
- E eu vou lá saber? No meu tempo, as mulheres que podiam estudar viravam normalistas. Os homens, no máximo, médicos ou engenheiros. Essa coisa de moda era só pra filho de bacana que ia pra Europa e voltava cheio de idéias!
- A coisa vai ser assim: eu desenho e a senhora costura. Vamos ficar ricos e famosos e, se Deus quiser, daqui a alguns anos, vamos passear na Ilha de Caras!

Só de ouvir essas palavras, aquele coração de mãe vinha à boca, pois, filha de padeiro com quituteira, era a primeira da família a ter um filho universitário. E isso já era um feito do qual podia se vangloriar no baile da terceira idade que freqüentava aos domingos.

Os anos passaram com certa violência e tiraram a velha costureira do convívio de Jorge. No dia do enterro, depois que todos foram embora, tal qual Scarlet O’Hara, o moço profetizou:

- Vou levar nosso nome pras alturas, mãezinha! A senhora vai ver! De lá de cima, mas vai ver!

Dias depois, já estava numa Fashion Week. Daí para o sucesso o caminho foi relativamente curto, pois sua ambição cabia como uma luva de pelica naqueles ambientes em que as partes nunca são pelo todo. E em que o todo não deve ser pleno, sob pena de descortinar uma desconfortável espontaneidade.

Antenado, Jorge optou por esconder suas origens e, para ostentar confiança, transformou-se na cópia da cópia de si mesmo. Se por ventura ficasse cansado de tanto simulacro, pensava na Semana de Madri, onde estreou internacionalmente e aprendeu, numa só tacada, a distribuir sorrisos de poliéster e a fingir que velhos conhecidos eram feitos de vidro, por onde seu olhar podia atravessar languidamente.

Mas a notoriedade mesmo veio quando copiou discretamente uma estilista tailandesa e disse tratar-se de mera licença poética. Logo depois, recusou o convite para participar de um evento dedicado à bajulação das novas estrelas da moda. Preferiu tirar férias em Mikonos.

Isso foi suficiente para que o editor-chefe de uma grande revista, conhecedor das tendências orientais, concluísse, em matéria de capa, que aquele jovem sabia o preço do sucesso, mas, de forma curiosa, não vendia sua alma corsária, ainda que ela estivesse muito bem cotada no leilão das vaidades descartáveis.

Diga-se de passagem, esse editor era conhecido por ser implacável nas suas avaliações mercadológicas: ele implicava com leiloeiros; apreciava mais os falsários.

Mesmo os feitos de poliéster barato.

A lista de Cindy

Cindy resolveu listar as características que mais a atraem no sexo oposto, pois acabara de completar 38 anos e seus óvulos não estavam ficando mais jovens. Para tanto, pediu ajuda à sua amiga Ângela, casada há mais de mil anos com o mesmo homem e mãe de três lindas crianças.

- Se disser que vai me ligar no dia seguinte, tem que cumprir com o combinado!
- Justo!
- Não dá pra ser mais baixo que eu, nem mais pobre, nem mais burro.
- Que mais?
- Não pode falar “menas”, nem “pra mim fazer” e nem dizer que “vai estar me ligando”.
- Sim, claro!
- Também não pode feder, já que sou toda cheirosinha e alérgica.
- Lógico, né, Cindy!
- Melhor que não fume, não seja artista, não tenha filhos e more na Zona Sul. Agora, se não morar, tem que ter carro, porque não tenho mais idade pra pegar trem!
- É, você no trem realmente seria um espetáculo à parte...
- Ainda não acabou: não gosto de homem que olha pros peitos das minhas amigas e que fica falando das ex-namoradas!
- Tá certo, Cinderela...
- Posso continuar ou você vai ficar debochando?
- Fala!
- Não curto barrigão de chopp e nem peito super cabeludo.
- Alguma observação em relação à idade?
- Que tenha menos de 50, porque senão vai ser avô do meu filho ao invés de pai!
- Acabou?
- Prefiro que não seja alcóolatra e que saiba falar através de metáforas.
- Metáforas?
- É claro, Ângela! Uma metáfora bem feita é capaz de me tirar da adstringência!
- Aí fica complicado, querida. Olha, já tô em cima da hora pra pegar as crianças, senão levo advertência da escola, é mole? Mas acho melhor você repensar suas exigências, porque a coisa tá preta!

Para não ficar pensando muito em coisas que provavelmente não vão mudar de jeito nenhum, pegou uma revista feminina e topou justo com uma reportagem sobre as agruras vividas pelas fêmeas solitárias que, discreta e desesperadamente, saíam às ruas à procura de um varão que não fosse gay e que não tivesse namorada. As dicas para o desencalhe eram a parte mais assustadora, como se freqüentar supermercados pela madrugada, elaborar perfis em sites de encontros e entrar pro jiu-jitsu fossem as coisas mais naturais na vida de uma mulher. Ao terminar sua leitura, as palavras de Ângela ecoavam como um terrível vaticíno: a coisa estava realmente preta!

Percebeu, então, estar diante de uma encruzilhada existencial: ou continuava sendo exigente e, portanto, incapaz de dispensar uma boa metáfora vinda de um peito moderadamente cabeludo e jovem, ou disfarçava sua insatisfação em meia dúzia de sorrisos triviais e fingia achar perfeito aquilo que não lhe agradava de todo, engrossando o coro das mulheres sem-critério que resvalavam na felicidade como tiros que saem pelas culatras.

Já que a situação era aquela, achou melhor sentar-se debaixo da árvore do tempo, para aproveitar a grandeza de sua sombra e a firmeza de seu tronco. Quem sabe assim, tranqüila e desavisada, não lhe caía uma fruta da estação bem suculenta aos pés?

Pensou nisso e, finalmente, relaxou.

Mulheres que bebem

- Ele é bem legal, vai!
- Jura?
- Se for preciso, posso até jurar...
- Mas você se lembra da noite toda, tintim por tintim?
- Sim.
- Lembra do debate sobre as mulheres que bebem?
- Lembro.
- Mesmo?
- Sim.
- Nossa...
- É, realmente, ele foi infeliz naquelas colocações, mas acho que foi por causa da avó dele...
- Avó, é? Sei...Pra mim, ele disse aquilo só porque é um machista dos infernos!
- Ah, que exagero!
- Se liga, boneca! Não é porque o rapaz é cheiroso e se veste com certa dignidade que ficou isento de ser um merda!
- Pára de levar essa história tão a sério! Nem teve tanta importância, vai!
- Pra você pode não ter tido, mas eu achei aquilo um acinte! Onde já se viu uma coisa dessas? O bofe, já no décimo chopp, acompanhando o ritmo frenético da mesa, resolve comentar, na frente das fêmeas presentes, que não gosta de mulher que bebe! Tive vontade de mandá-lo praquele lugar!
- E por que não mandou, então? Logo você, que se diz tão espontânea! Devia ter-se colocado!
- Ah, não tava a fim de criar conflito em plena noite de sexta-feira. Mas, porra, quem ele pensa que é? O fundador do AA? O defensor supremo da moral e dos bons costumes da classe média bacaninha portadora de laptop wi-fi? Ah, se eu fosse homem...comigo ele não se criava!
- Você é igualzinha a ele, só que na versão mulher! Não sei porque se ofende. Vocês são feitos da mesma matéria.
- Qualé? Tá me chamando de machista agora?
- Não é isso, querida, mas acho que o comentário dele não foi tão ofensivo. Acho que ele é um cara traumatizado com o alcoolismo. A avó dele bebeu até morrer, sabia? Pesada a história da coroa! Ele me contou que ela, já internada no hospital, pedia birita pra ele! A coroa vomitava, se limpava e continuava pedindo birita. Sabe o que é passar por isso ainda adolescente? Sinistro, amiga! Dá um desconto pro rapaz! Essa é uma seqüela dele...
- Aham...
- Pô, a gente tem que tentar entender que as pessoas têm dores abissais e que elas se manifestam de vez em quando, até mesmo em momentos de pura diversão. Olha, eu tenho certeza que ele não teve a intenção de ser desagradável, nem quis ofender abertamente todas as mulheres que bebem. Ele é só um cara fudido emocionalmente. Mas é uma pessoa boa, acredite!
- Você tá dando pra ele, não é?
- Putz...
- Tá, né? E pelo visto tá bom o negócio...
- Ai, ai...
- Impressionante, cara! Mulher é foda!
- Acho melhor você parar com essa pilha agora!
- Não páro não! Duvido que você tivesse essa postura se ele não te atraísse sexualmente! Aí, tenho certeza que você estaria do meu lado, estaria dizendo que reparou o quão machista foi o comentário dele e blá blá blá...mas a buceta fala mais forte, né?
- Olha só! Parou, ok? Parou! Você pensa que é quem, minha cara? Não sabe da missa a metade e fica pagando de feminista. Feminista de merda, diga-se de passagem, porque na hora que o machista dos infernos puxou a conta e pagou tudo no cartão dele, ninguém se manifestou. Geral ficou caladinho!
- Depois do que ele disse, tinha mais que obrigação de pagar a conta!- Ai, que nojo!
- Se você acha que eu não tô certa, por que você não se ofereceu pra rachar a conta com ele?
- Porque ele me come, ok? Porque depois dali, deixamos vocês em casa e trepamos até dez da manhã. Desculpe, mas eu gosto de homem que paga a minha conta, que abre a porta do carro, que me recebe com flores no aeroporto, que repara no meu corte de cabelo, que acende o meu cigarro e blá blá blá. Pode me chamar de antiquada, pode dizer que minha buceta fala mais alto. Alias, ela não fala alto não, amiga. Ela grita, berra, uiva! Ela é feliz, assim como a dona. Entendeu?

Diante do abismo que se abriu, as amigas precisaram ficar um tempo sem se encontrar.

Porque, por mais que o mundo venha discutindo a situação da mulher contemporânea e todos os fascinantes caminhos a serem percorridos por ela, muita coisa ainda clama por um código de ética, por um glossário ou até mesmo por uma bola de cristal.

No fundo, ainda que debaixo de muito ácido fólico, todas nós temos um quê de bruxa. Só que a fogueira em que ardemos é a da hipocrisia suprema.

Helena e Inês

- Será?
- Pode ser isso sim!
- Sei lá, Inês, tô meio sem saber o que pensar.
- Mas por que você tem sempre que saber o que pensar? Isso é uma das coisas que te fode, sabia?
- É, eu sei.
- Então, relaxa, Helena! As coisas sempre acabam dando certo, de um jeito ou de outro.
- Até parece!
- Pára de charme, nêga. Eu conheço poucas pessoas mais fantásticas que você. E digo isso de coração! Você é forte, sensível, talentosa. Além disso, domina as palavras com uma facilidade de dar inveja!
- Pára com isso que eu fico até sem jeito...
- Vou parar, mas antes me escuta! Apesar de tantas qualidades maravilhosas, você tem que entender que nem sempre as coisas precisam acontecer exatamente do jeito que você imagina ser o correto. Nem sempre a reta é a maneira mais interessante de unir dois pontos, entendeu?
- Saquei. Mas, me diga, o que você faria, se estivesse na mesma situação?
- Em primeiro lugar, eu seria honesta comigo mesma e me perguntaria o que eu quero de verdade. De nada adianta ficar procurando alguém que caiba numa idéia cristalizada de bom moço, sabe? Porque isso faz de você uma pessoa careta e mediana, entende? E aí, um cara legal, que por ventura venha a aparecer na sua vida, vê essa pessoa careta e cai fora! E tudo isso porque, mesmo sendo um cara legal, ele não chega nem a ter a oportunidade de te conhecer de verdade. Por exemplo, esse carinha aí, qual é a dele?
- Não sei. Na verdade ele mora longe e a gente vinha se falando basicamente pela internet. Mesmo assim, ele parecia interessado. Mas interessado de um jeito legal, sem ser grudento nem meloso, sabe? Só que tem que, de uns dias pra cá, ele sumiu, o que foi estranho, porque eu estava planejando ir visitá-lo no fim do mês.
- Estranho mesmo. Será que ele tá meio confuso com essa coisa da distância?
- Acho pouco provável, Inês.
- É, né? Bem, pode ser que ele esteja ocupadérrimo, numa dessas ondas enlouquecidas de trabalho, que acontecem com todo mundo. Agora, é bom ficar atenta, porque muitas vezes os meninos usam o trabalho como uma desculpa pra se afastar da gente sem ter que dizer a verdade.
- Ô...
- E tem também aquela velha história, que não podemos descartar, já que não sai de moda nunca, que é a da ex-namorada que aparece, de repente, a fim de reatar, como costuma acontecer em novelas e seriados, sabe?
- Se sei!
- Enfim, são tantas as possibilidades que chega a dar um cansaço só de pensar. Definitivamente, não dá pra entender o que se passa na cabeça dos homens!
- É, né? Será então que ele tá me testando?
- Humm...Será? Olha, minha intuição me diz que os homens não constumam ser tão maquiavélicos. Esse tipo de mesquinharia é mais coisa de mulher. Na verdade, os homens são mais simples do que costumamos imaginar. Uma vez, uma amiga ótima me disse uma coisa incrível, mais ou menos assim: que homem é que nem geografia na escola, melhor decorar do que tentar entender. Que tal?
- Essa foi boa! Então, acho que o melhor é deixar pra lá, né?
- Deixar pra lá não! Isso é pras mulheres medianas. Você é talentosa demais! Merece requinte!
- Ai, ai, amiga, você é uma figura!
- Pronto, tive uma idéia sensacional! Você vai escrever um conto e vai mandar pra ele, só pra ver a reação do rapaz!
- Aí é covardia! Ele adora as coisas que eu escrevo.
- Amiga, o moço vai adorar saber que você escreveu um conto inspirado nele.
- Mas ele vai achar que eu tô apaixonada! Vai sair correndo mais ainda!
- E você tá apaixonada?
- Não.
- Fala a verdade, caralho!
- Não tô! Mas confesso que estava gostando da situação, sim. Pensa bem: um carinha todo romântico, dizendo que quando eu for visitá-lo vai me dar tratamento vip, com direito a violão, caminhadas na natureza, sombra, água fresca...
- Violão, é?
- Isso mesmo!
- Só falta saber uma coisa.
- O que?
- Quantos anos ele tem?
- Exatamente a minha idade. Trinta e seis.
- É, cherrie, diante da realidade carioca, onde a maioria dos homens só pede o telefone das meninas para colecionar expectativas e ter o que comentar com os coleguinhas na hora do chopp...
- Agora você entendeu o babado, né, amiga?
- Sim, claro. Olha, não restam dúvidas do caminho a seguir: você vai escrever um conto pro moço vip. Ele não é romântico? No mínimo, vai adorar!
- Não sei não.
- O que você tem a perder? A virgindade?

Diante de tamanha veemência, Helena, embora ainda relutante, resolveu acatar a sugestão de Inês e, no dia seguinte, o conto já estava escrito.

- Ficou ótimo! Sucinto, objetivo e honesto.
- Mesmo?
- Mesmo! Fica claro no texto que você é uma paranóica do bem. Menina, se eu tivesse esse dom, economizaria uma baba na terapia!
- Mas você acha que vai surtir algum efeito bacana?
- O que você chama de efeito bacana?
- Ah, ele curtir o conto numa boa, sem ficar assustado.
- Sinceramente, em se tratando de homens, o susto é sempre um risco a se correr.
- É, né?
- É! Mas vida sem risco não é vida, é plano de saúde sem carência! E se o rapaz ficar arredio, fazer o quê? Pelo menos você foi macho o suficiente pra colocar suas neuroses pra fora e isso já é grande coisa. Agora, vamos!
- Vamos pra onde?
- Gata, esqueceu que hoje tem tributo a Pink Floyd naquele barzinho que eu te falei, lá na Barra da Tijuca? Só gatinho saúde, do jeito que você gosta! Vamos embora! A vida corre, a fila anda e a caixa é rápida!
- Ok! Bora! Vou colocar aquele tomara-que-caia vermelho então!
- Ótimo! Esse é o espírito!

Foram e beberam, felizes, na fonte da saúde suprema.

No meio daquele florido tributo, Helena teve, finalmente, uma das certezas mais pungentes de sua vida: a de que nas horas mais burras, para nos salvar do limbo, melhor que uma amiga sábia, só mesmo esse tal de rock’n roll.

A certeza de Cristina

Cristina já havia se acostumado a varrer aflições pra debaixo do tapete e tinha o que se pode chamar de alma auto-limpante. Porém, dia desses, quando estava varrendo uma magoazinha besta, dessas que dois chopps costumam dar conta, a poeirada insurgiu-se como um ciclone contumaz, revelando a magnitude da tristeza que há tempos a acompanhava de forma sistemática e sorrateira. Por mais difícil que fosse uma descoberta desse porte, no fundo, chegava a ser um alívio poder finalmente ter motivos para abdicar do título que vinha ostentando desde sempre: o de baluarte da alegria flamejante. Dali em diante, um inexplicável apreço por si mesma tomou-a de assalto e algumas pequenas grandes atitudes foram tomadas.

Suas amigas de balada, no entanto, ficaram confusas:

- Parar de fumar, tudo bem, mas parar de beber é um pouco demais, não acha?
- Ah, sei lá, num tô a fim.
- Mas vem cá, qual a graça de sentar num boteco com as amigas e não encher a cara?
- Ué, pelo simples prazer de estar com as pessoas!
- Porra, mulher, qual foi? Virou crente?

Cristina até poderia entrar no mérito da questão, mas não estava a fim de destrinchar os meandros de sua psiquê. Queria apenas beber água tônica e jogar conversa fora. Assim, puxou um papo irrelevante qualquer e conseguiu mudar o rumo daquela prosa.

Uma semana depois, pra variar, saiu com as mesmas amigas. Como dessa vez não estava com paciência para papos irrelevantes e queria encerrar de vez a especulação sobre suas decisões, achou por bem fazer uso de uma mentira sincera:

- Tudo bem, vocês querem mesmo saber por que parei de beber?

O silêncio que se seguiu revelou a curiosidade daquele grupo de fêmeas.

- Parei porque quero emagrecer,ok? Conheci uma pessoa e estamos começando a sair. Não quis dar de primeira, pois preciso estar confiante. E se tem uma coisa que faz minha auto-estima ir pelo ralo é não conseguir olhar pra minha própria bunda sem o auxílio de um espelho, esteja ele no teto ou no armário embutido.

Fernanda, a mais animada da mesa, tomada por uma solidariedade pungente, partiu firme em direção ao resgate da auto-confiança da amiga:

- Mas você não precisa de espelho pra ver sua bunda, Cris! Quê isso? Olha o exagero, vai!
- É, Nanda, concordo, eu até que tô bem. Ainda! Mas todas sabemos que a birita dá uma dilatada básica no estômago e arredores. Se eu não me cuidar, essa gordurinha em volta da cintura vai se acumular e, quando eu menos perceber, terei passado de gostosona a grandona. E aí o caminho é sem volta!

Sentindo um certo desconforto no ar, fez um infalível apelo de mulher para mulher:

- Meninas, eu fiz 30 já tem um tempinho. Não posso mais ficar marcando touca! Quero passar uma boa imagem pra esse rapaz, tem algum mal nisso?

Fernanda chegou a se levantar, tamanha era sua incredulidade:

- Gente, essa mulher tá chamando o bofe de rapaz! Vocês estão crendo nisso? O bagulho é sério! Um brinde a essa doida!

Depois do brinde, como era de se esperar, veio o momento mulherzinha:

- Conta tudo, gata! Quem é ele? Ele é bem? Já deu pra sacar o calibre da pistola?
- Calma, gente! Vocês não conhecem, é um amigo do meu irmão, um analista de sistemas. E a pistola parece satisfatória, sim, suas taradas!
- Que vaca você! Arrumou um macho pirocudo pra pagar suas contas! Agora vai fazer a linha magra, abstêmia e viciada em esportes, né?

O celular de Cristina toca. Ela finge ser o pretendente do outro lado da linha:

- Oi, tudo bem? Me dá só um segundo?

Se afasta da mesa para ter privacidade. Na volta, paga sua tônica e aproveita pra sair em grande estilo:

- Meninas, era o gatinho. Vai passar lá em casa pra gente ir ao cinema e depois jantar no japonês. Fui!

Na verdade, era sua mãe ao telefone, avisando que havia passado no mercado e que, portanto, os estoques de coalhada, blanquet de peru e gelatina de morango tinham sido perfeitamente repostos.

Dentro do táxi, Cristina sentiu-se um pouco culpada por ter mentido pras amigas. Mas sabia, lá no fundo, que aquela mentira era de fato uma verdade projetada, pois uma certeza sem remetente dava o ar de sua graça e anunciava que, assim que conseguisse alcançar o olho do furacão, estaria pronta pra descer até o porão de sua consciência e executar uma faxina colossal.

Depois da limpeza, finalmente, poderia pensar em acordar todos os dias na companhia de um só homem, que soubesse fazer surpresas e que gostasse de esportes intra-aeróbicos de baixo impacto e longa duração. Sem intuito competitivo, obviamente.

Nem era pedir muito.

Jorge e Jane

Aparentemente, Jorge e Jane formavam um belo casal: ele, político marxista; ela, colunista interessada em relações humanas. Intelectualmente ágeis, eram conhecidos como aquele casal que problematizava tudo o que via pela frente, do preço do tomate orgânico à queda do dólar. O embate de neurônios realmente os excitava e tinha um efeito muito mais eficaz do que qualquer par de algemas, chicote ou óleo para passar nas entranhas. Podiam ficar dias assim, teorizando e exibindo seus cérebros esculpidos em horas e mais horas de onanismo estético.

Com o passar dos anos, no entanto, a vida deles foi parecendo mais bacana do que na verdade era, já que Jorge, apesar de ter-se transformado num político digno e eloquaz, dentro de casa era uma pessoa lacônica, broxa e até pusilânime. Isso foi fazendo de Jane uma mulher insegura, impotente e frígida.

Mas a gota d’água ainda estava por vir:

- Então, querido, preciso saber o que você achou daquele release que fiz pra sua amiga lá do Partidão.
- Legal.
- Mas e a parte em que eu falo que a modéstia é a purgação burguesa, você não achou pesada demais?
- Achei dialética.
- Mesmo?
- Aham. Pertinente.

Acontece que Jane não tinha sequer citado a burguesia em seu release e aquilo foi meio que a azeitona azeda da empada existencial na qual havia se transformado seu casamento.

- Mas você não acha que essa é uma falsa questão?
- Não, Jane, já disse que achei bom, ok? Agora queria terminar de escrever esse artigo, que é pra plenária de amanhã.

Jane, que tinha até comprado uma caixa de K.Y., finalmente entendeu o cerne da questão e resolveu, após anos de secura e estagnação, agir de forma pragmática.

- O que você está fazendo?
- As malas.
- Pára de drama, vai! Assim que eu terminar aqui a gente vai na locadora pegar uns filminhos, ok?
- Ah é? E o que você quer ver? Lua de Fel, O Império dos Sentidos ou Encaixotando Helena?
- Ih...
- Chega, Jorge! Eu sou nova, bonita, inteligente e minha bunda ainda nem sequer começou a dar sinais de queda. Se eu não sair desse casamento com meus próprios pés, ninguém vai vir me buscar. Você é um homem ótimo, um político sensacional, mas esqueceu que a paudurescência é a única maneira de sair dessa caverna de Platão que virou nossa vida. Pra mim chega! Eu não quero mais ser seca e suave!

Jane jogou fora a caixa de K.Y., pegou suas coisas e, sem perder a ternura que ainda lhe restava, virou uma caçadora da umidade perdida.

Já Jorge, terminou a tempo de escrever seu artigo, fez um café e acendeu um charuto.

Micaela

não tinha coisa mais chata pra micaela do que encontrar acidentalmente uma amiga na rua e ter de disfarçar o próprio abismo, pra se fazer de superior:

- oi, querida!
- quanto tempo! tá sumida!
- ando ocupada.
- mas amanhã a gente se vê, né?
- o que tem amanhã?
- é o lançamento do livro de poesias do cleyton.
- que bacana.
- você não estava sabendo?
- acho que recebi um email sim, mas já tinha até esquecido que era amanhã.
- você vai, né?
- de repente...
- pô, amiga, você tá enclausurada igual a uma carmelita descalça! sai dessa lama!
- tenho ficado mais em casa mesmo, tô meio sem saco de sair. tem sido até bom, tenho feito companhia pra mim mesma.
- sei...
- sabe o que?

passados aqueles segundos eternos em que toda a repetitiva história das relações humanas se revela como uma caixa de pandora semi-aberta largada no jardim das cerejeiras mofadas, michaela abre o jogo:

- não tava a fim de encontrar o bernardo.
- ahhhhhhhhhhhh.
- pois é.
- ele vai, com certeza.
- o problema não é só ele...
- realmente, essa história foi bizarra: o cara em um mês passou de seu quase-namorado a futuro pai de gêmeos de uma amiguinha da facu.
- ele não era pra mim, só isso.
- mas mesmo assim é difícil de engolir.
- só com uísque, nêga.
- também não precisa virar heleninha roitman por causa desse maluco!
- uma dose por dia já me anestesia o suficiente.
- acho que você tem que arrumar outro e esfregar na cara dele.
- melhor não ver a cara dele. nem a barrigona dela.
- é, talvez você tenha razão.

micaela não foi ao lançamento do livro de cleyton. também não arrumou outro pra esfregar na cara de ninguém. a única coisa que conseguia fazer era ir ao supermercado sempre que o uísque começava a dar sinais de que iria acabar. sabia que tudo aquilo era só um momento de angústia e que, em breve, o gosto de fel passaria, tal qual big brother. restava saber a quantos uísques estava da libertação, pois seu estômago já tinha começado a reclamar.

e sua alma não sabia mais pra onde ir.

Anita carente

anita está carente há um tempo, mas a proximidade das festas de fim de ano agrava sua situação:

- sabe se o henrique vai no open house da joice?
- pô anita, henrique não!
- calma, ellen, perguntei por perguntar. ele também não é nenhum chupa-cabra...
- agora ele é ótimo né? que memoriazinha mais fraca a sua!
- queria que ele me visse agora que eu tô mais magra.
- não sei o que você viu nele.
- ah, ele beija bem.
- eu também beijo bem e nem por isso você fica perguntando se eu vou ou não no open house da joice.
- pára, ellen!
- tô falando sério, baby, e você sabe disso. pára com esse charme de artista.
- você sabe que eu não faço mulher.
- já beijou a rita que eu sei. ninguém me contou, eu vi.
- cheia de uísque na cabeça, beijaria até o zagallo.
- sei...
- ah, ellen, não vou entrar nessa discussão com você agora.
- tá certo, a vida é sua.
- beijar mulher é uma coisa. outra coisa é lamber os peitos, tomar sopa sem colher. sem chance! e nem adianta dizer que nós temos duas mãos, cada uma com cinco dedos e que existem vibradores tailandeses capazes de coisas incríveis porque você sabe muito bem que eu não acredito nessa história de piroca de plástico!
- nossa, como ela é radical: “eu não acredito nessa história de piroca de plástico!”. melhor piru de plástico do que homem imbecil acompanhando uma piroca. veja só o henrique, um ano de namoro e você nem ao menos foi apresentada aos pais da criatura...
- não fala assim que eu deprimo. a falta de perspectivas me assusta.
- assusta não! vamo na festinha da gi. você não vai se arrepender.
- ellenzinha, vou não. vai você, querida. e não se atreva a voltar pra casa sozinha!

ellen foi e trouxe uma gatinha pra casa. já anita ficou. quando deu meia-noite, entrou na internet e acabou encontrando um carinha bom de papo que parecia bonitinho na foto. sabe-se lá se era ele mesmo na foto ou se essa era a única foto boa que ele já tirou na vida, quando era atleta de pólo aquático há vinte anos atrás. ainda assim, resolveu arriscar. marcaram de se conhecer no sábado, na feijoada da mangueira. quando contou pra ellen sua façanha, a amiga surtou:

- não acredito nisso. e se esse cara for um psicopata? eu vou contigo nessa feijoada, nêga. qualquer coisa a gente grita.
- quem você acha que eu ia chamar pra me acompanhar?
- vou abrir o chandon então.

depois de matarem duas garrafas de espumante, ellen e anita celebravam não só a perspectiva de uma delas se arrumar, mas também o fato de estarem firmes e solidárias em cada momento de suas existências. elas sabem que dali a um ano a vida pode ter dado mil voltas, mas que, ainda assim, aquele laço, feito à base de gargalhadas, itaipavas, lágrimas e chandon, jamais seria desfeito.

porque amigas do peito são como árvores, morrem de pé.

Alice e a mixaria

alice e seu gatinho resolveram terminar, mas, como ainda se gostam e querem continuar trepando alucinadamente, continuam saindo juntos. assim, passaram a viver a conhecida relação de neurose aberta, onde os dois ficam aflitos fingindo que está tudo normal e ninguém toca no assunto de maneira objetiva.

em casos como esses, é natural que uma das partes comece a regular a mixaria:

- faz aquela massagem no meu pé, neguinha linda.
- agora?
- se não for agora, vai ser quando?
- pois é...

o gatinho percebe que deve parar de insistir e resolve ir por outro caminho:

- tá bom, vou fazer aquela caipirinha com açúcar mascavo pra gente.
- tô tomando remédio, baby, não posso.
- tá certo. vou apertar um então pra gente fumar. jorge veio da bahia com um soltinho fenômeno.
- parei com as drogas, baby, tava ficando muito seqüelada.
- coca light?
- tem limão?
- putz, esqueci de comprar, mas posso ir agora na padaria ver se tem.
- ah, esquece, tô numas de parar com bebidas gasosas, por causa da celulite.
- que celulite, linda, você é maravilhosa, com essa bundinha redondinha.
- você tá falando isso só pra me agradar, pra ver se consegue alguma coisa a mais.
- e se eu tiver falando isso só pra te agradar? não posso?
- poder até pode...resta saber qual seria o objetivo de tanto esforço...
- alice, não é porque a gente terminou que eu parei de gostar de você, do seu cheiro, do seu sorriso de quem fez coisa errada, do chulézinho que sai daquela sua sapatilha de forró.
- chulézinho? fala sério!
- adoro.
- adora porra nenhuma!

tendo esgotado a capacidade de verbalização, o gatinho põe-se a colocar em prática seu discurso e começa a lamber o pézinho chulepento de alice que, sem reação, cala sua boquinha de menina mimada acostumada a habitar o país das maravilhas onde homens perfeitos são feitos de plástico.

o gatinho, depois de violar os códigos da vigilância sanitária e se arriscar a uma leptospirose iminente, acabou conseguindo o que queria.

já alice, de dedão limpo, parou de regular a mixaria.

em um mês voltaram.

outro dia mesmo foram vistos tomando coca light com limão numa adega de copa.

vão-se os anéis, ficam os dedos

- não creio! ele fez isso?
- fez.
- do nada?
- foi.
- mas você não pediu nenhuma explicação?
- não.
- amiga, você já foi mais combativa. quê isso? vai deixar barato?
- o que você sugere que eu faça, anita?
- sei lá.
- se você não sabe, quer que eu, que transei com ele durante um ano, saiba?
- claro.
- baby, o buraco é mais embaixo.
- como assim?
- ah, ele não teve a dignidade de falar o que tava sentindo na minha cara! o que eu posso esperar de um homem desse? ah, quer saber? cansei! agora resolvi dar pro wagner
- mas o wagner é o melhor amigo dele.
- pois é, já que não existe diálogo, resolvi exercitar o monólogo da minha vagina.
- você não vai fazer isso, né?
- não.
- que bom!
- eu já fiz, gata. ontem. chego a estar assada de tanto trepar. nunca vi homem pra gostar tanto de buceta, menina, tô impressionada. aliás, se eu soubesse disso antes, teria chifrado o antônio com ele ao invés de somente usá-lo como instrumento de vingança.
- querida, existem melhores maneiras de se sair de uma situação dessas.
- eu não conheço. tô mais do que vingada, tô com a sensação de estar usando uma calcinha que acabei de tirar da gaveta.

desse dia em diante, antônio passou de algoz a vítima. sua ex-namorada, de vítima a vagabunda sem coração. já wagner, perdeu o melhor amigo mas ganhou uma namorada furiosa, disposta a preparar-lhe doses cavalares de chá de buceta, sempre seguidas de banhos de permanganato de potássio, para atenuar os efeitos do atrito. no fim de 3 meses os dois estavam apaixonados. ou pelo menos acreditavam nisso de forma veemente.

anita, a fiel e solidária escudeira de plantão, acabou chamando para si a responsabilidade de curar a dor de corno do ex-homem alheio. conversa vai conversa vem, achou que não teria nada de mais dar um confere no material de antônio, já que ele, tal qual plano de saúde recém-adquirido, estava em período de carência.

vão-se os anéis, ficam os dedos. vão-se os dedos, ficam os nervos.

resta saber quem vai pagar a conta do analista dessa galera.

o sorriso de Monalisa

karine estava saindo com um rapaz há um mês e vez por outra tinha de ouvir aquela coisa chata que vem no pacote da mulher independente pós-moderna:

- olha, nós nos gostamos mas não estamos namorando.

o pior nem era ouvir isso. era ter de abrir imediatamente um sorriso de monalisa que acabou de queimar o sutiã em praça pública. como não era a primeira vez que isso lhe acontecia, acabou se acostumando com essa baboseira pseudo qualquer nota, essa coisa ‘sex and the city in dust’.

depois de exatos 3 meses o rapaz sumiu e, de acordo com o código de ética desses tempos cansativos, teve de esperar que se completassem 2 semanas para procurá-lo. ao fazê-lo, obteve a resposta mais inconseqüente que os rapazes costumam dar ao se sentirem pressionados, a meia-verdade mais covarde que já existiu:

- é que eu tenho andado muito ocupado. mas nesse fim de semana te ligo pra gente conversar.

o fim de semana passou como um cágado baiano e nada de telefonema dele. karine sabia que nem devia ter esperado tanto para declarar para si mesma que estava tudo acabado. como não havia motivos para verter lágrimas, tocou o barco adiante e passou a se abrir para novas possibilidades em sua vida. voltou a sair à noite e a buscar fora o que dentro não se aquietava de forma alguma. e, numa dessas noites, esbarrou com o dito cujo. isso já não teria sido legal na parte da manhã. que dirá à noite, numa festinha de amigos em comum. mal sabia ela que o pior ainda estava por vir:

- oi, karine!
- oi, valério, tudo bom?
- tudo...há quanto tempo...
- pois é, você sumiu de repente.
- é, eu tava muito ocupado.
- humm...
- ah, não fica chateada comigo não, eu tava ocupado mesmo.
- não tô chateada, só acho que você podia ter dito a verdade.
- mas eu ia te ligar hoje mesmo pra te contar. eu parei de te ligar porque comecei a namorar. ela tá até aqui, vou te apresentar. acho que vocês têm tudo a ver, vão se dar super bem. porque eu gosto muito de você e não quero perder sua amizade.

karine sorriu e pediu licença para ir ao banheiro. de lá rumou para a porta da rua. no táxi, com a cabeça pra fora da janela, chorou pela primeira vez sobre o leite derramado. pensou no quão desagradável é perceber que todo esse papo de “nós nos gostamos mas não estamos namorando” é até muito bacana, mas que no fundo é uma forma hipócrita de protelar uma relação de afetos desiguais, que em alguma hora vai levar alguém a se sentir um idiota por ter acreditado em meias verdades ditas à meia luz. nunca mais viu o rapaz e nem soube dele. deu a si mesma um tempo para curtir aquela dor de corna e pensar no que poderia tirar de bom dessa experiência desagradável. retomou seu prumo e concluiu que para cada meia-verdade engolida em seco, uma mulher inteira deixava de ficar molhada.

nunca mais sorriu feito monalisa que acabou de queimar o sutiã em praça pública.

Maria Maria

maria é filha de astróloga e muito cedo já sabia tudo sobre trânsitos, quadraturas, sêxteis e signos complementares. podia estar numa festinha fantástica, não importava, invariavelmente o papo caía na astrologia. só para se ter uma idéia, a primeira coisa que fazia quando conhecia alguém que considerava especial era fazer-lhe um mapa astral instantâneo, esquema sopa de saquinho. é claro que era pra se exibir, para mostrar o quão culta e interessante pode ser uma moça de sua idade antenada com os movimentos interplanetários e desprendidíssima de valores sórdidos associados ao capital e a suas devidas desproporções.

maria só tinha um medo na vida: o de se apaixonar. sagitariana do primeiro decanato, sabia que isso poderia ser um erro fatal, principalmente se esse encontro se desse com um escorpiano do último decanato. desde menina, quando ainda rezava pra não fazer xixi na cama antes de dormir, já tinha pesadelos com essa temática e acordava suando e chorando. sabia que seria praticamente o fim de toda uma existência feliz. estranhos mecanismos na mente de maria fizeram com que seu medo se concretizasse em um malemolente estudante de medicina, meio largadinho e de barbinha, que brotou no centro acadêmico numa manhã chuvosa de outono.

- e aí, pessoal tudo certo? vocês sabem me dizer onde é a xerox?

maria imediatamente foi a mais solícita:

- seguindo o pátio até o fim, tem uma rampa. daí você sobe e vira à esquerda. eu tô indo lá agora tirar umas cópias.

e foi. no curto caminho se apaixonou. e teve a ilusão de que não estava dando a menor bandeira:

- você estuda aqui?

- não, eu sou da medicina, mas preciso xerocar uns textos sobre cinema noir.

- pra algum trabalho da facu?

- na verdade é pra minha monografia. eu faço um estudo comparativo entre saúde e cinema europeu.

- poxa que bacana.

maria não teve tempo de perguntar o signo dele. mas sua presteza foi impresionante:

- então, olha que legal. eu tô cons uns manuscritos do godart lá em casa. se você quiser posso fazer umas cópias pra ti.

- poxa, eu adoraria. como a gente faz?

- você pode ficar com o meu cartão.

seis meses depois descobriu o signo do rapaz, mas aí já era tarde. teve de encarar o escorpiano do último e definitivo decanato.

parece que maria parou de acordar chorando e soluçando.

Sabine

desde menina sabine demonstrava sinais nítidos de exuberância. na quarta série já curtia calcinha vermelha, olhar de soslaio, camiseta de educação física gasta e sutiazinho aparecendo. sabia que esse tipo de coisa deixava os meninos mais amiguinhos dela do que das outras em suas maria chiquinhas, sempre envoltas na árdua tarefa de combinar a calcinha com a lancheira das meninas super poderosas. sabine tem umas coisas assim de guria que esconde a mulher e de mulher que esconde a garotinha esperando a van filosofia pra escola sozinha. um caso de vaquice assumida. e nem adianta dizer que é problema com o pai porque sabine sempre se deu bem com o coroa. aliás, foi ele quem lhe ensinou a letra de ‘vaca de divinas tetas derrama o leite bom na minha cara e o leite mau na cara dos caretas’, canção que sabine ama de paixão e que volta e meia (depois de uns gorós) acaba cantando, geralmente em cima de uma mesa.

sua vida parecia uma festa de baco diária. a única coisa que cansava sua beleza era a dificuldade com os representantes do sexo oposto, principalmente os de sua geração. esses tinham pânico dela. como gostava de manter as unhas sempre compridas, vivia namorando meninos 15 anos mais novos, que até eram um bálsamo para seu ego, mas trabalhosos no sentido pragmático. acabava gastando boa parte do seu salário em motel, táxi e proseco. mas isso era até tranquilo. o pior era depois, passados alguns meses, quando esses mesmos meninos, depois de terem tido acesso ao melhor sexo que poderiam pensar em experimentar em suas tenras idades, a trocavam por alguma gatinha que haviam conhecido num congresso, num trote de calouros ou numa festinha da facu.

os anos continuaram passando implacavelmente e sabine foi se especializando em desenrolar carretéis, cada um maior que o outro. até chegar uma hora que ficou cansada desse ciclo escroto. resolveu assumir sua condição de balzaca e passou a fazer programas de gente que trabalha, que paga motel e que não pode tomar cerveja às 2 da tarde.

porque vaca que é vaca sabe até onde quer dar de mamar.

Sofia e o supervisor

sofia é meio artista e há tempos não trabalhava de carteira assinada. não lembrava mais o que era um tiquet refeição, uma catraca, um exame de admissão. o fato é que estava empolgada, essa vidinha de neohippie sem grana para ir ao japonês já tinha cansado sua beleza balzaca esvoaçante. agora poderia mergulhar em baldes de kerastase e se esconder atrás de potes de lancôme, além de poder deixar de lado o hábito brega de beber proseco só em dia de festa. estava tudo indo até bem num certo sentido, como costumam ir bem todas as coisas que se repetem e se arrastam como velhos medos de coisas novas ou inexistentes. no meio disso tudo apareceu o supervisor falcão, homem de fala lenta, arrastada e desesperadamente lânguida. o cara meio que curtiu sofia que em nenhum momento foi recíproca. inclusive passou a pedir para seu namorado ligar durante o expediente, just in case. mas falcão realmente curtiu sofia. os diálogos entre eles eram lamentáveis e desnecessários, pois o figura achava que ser erudito era o lance crucial no ato da conquista.

- sofia, sofia, você sabe de onde vem o nome sofia?
- sei sim senhor.
- então diga: de onde vem?
- lembrei que preciso fazer uma ligação urgente.

esse tipo de papo não assutava falcão, muito pelo contrário, o estimulava, uma coisa desesperadora. sofia não teve escolha. teve de ser macho. às sete da manha. na salinha do café. nem a faxineira podia ser testemunha.

- queria falar uma coisa com o senhor
- vc me falou ontem sobre a necessidade de outra pessoa no seu setor, já estou providenciando
- não é sobre isso
- pois não
- queria pedir pro senhor parar de encostar em mim
- como assim? eu encosto em você?
- encosta sim senhor, por vezes toca minha perna e não gosto. pode ser uma idiossincrasia besta mas o senhor precisa entender que meu corpo é meu território e nele só toca quem eu dou espaço. estou querendo dizer que se o senhor encostar em mim mais uma vez eu vou passar no rh depois do expediente de hoje.

o supervisor falcão engoliu em seco. aproveitou que estava na copa e pegou um copo d’agua. não disse nada por alguns segundos, que para sofia foram a máxima eternidade que poderia existir numa copa microscópica de uma empresa mais ou menos grande. com dificuldade de parar de gaguejar, disse a única coisa que conseguiu pensar naquele instante:

- não há necessidade de rh.

realmente não houve. o sujeito teve de se curvar diante da ameaça provocada por sua determinação exasperada e imensa. sofia parecia uma leoa ávida por carne humana. mesmo que fosse de quinta.

para Ju

analu e carmem não se viam desde os tempos em que faziam teatro. se encontraram do nada, numa pré-estréia boca livre no odeon. papo vai papo vem, os velhos tempos foram ganhando vida.

- e a fábia, hein? quem diria, fazendo novela das 8!
- sensacional, né? encontrei com ela outro dia na praia e ela falou que almoçar com thiago lacerda já virou rotina...
- que chato, hein?
- muito! diz ela que anda recebendo tanto convite pra sair que precisava ser uma profissional do sexo pra dar conta de todo mundo!
- que ótimo! e o resto do pessoal? tem tido notícia? eu tenho pensado tanto na ju. quase que liguei pra ela outro dia. você sabe dela?
- querida, você não soube?
- do que?
- poxa, achei que você tinha sido avisada...
- avisada do que, ai meu deus, o que aconteceu com ela?
- querida, ela morreu.
- meu deus! foi do coração? ela tinha uma má-formação congênita…
- nem foi, ela tava deprimida e se jogou da janela de casa.
- ah, não, cara, não! não pode ser, não pode ser! você tá brincando.

analu não conseguiu mais ficar ali, bebemorando a frivolidade desse mundo cão. nem carmem, que ficou arrasada de ter sido portadora de notícia tão absurda.

- tem quanto tempo isso?
- um mês.
- com quantos anos ela tava?
- 26.
- puta que pariu, cara, não tô acreditando.

no táxi, contendo o choro para não parecer que estava tendo uma síncope, analu começou a se lembrar daquela guria que tinha cativado seu coração. veio logo à mente o primeiro dia em foi à sua casa e que viu seus quadros, poemas e fotos de infância em brasília. lembrou da mãe dela levando bolo ana maria com coca-cola pras duas e de tudo que conversaram, entre almofadas de coração, príncipes encantados e castelos de areia, como se se conhecessem há séculos. teve raiva de si mesma porque pensou na amiga há um mês e não deu um simples telefonema. sentiu culpa de não saber que ela estava tão deprimida. teve pena daquela mãe que vivia a comprar bolos e guloseimas e que não pôde, nem com todo o amor visceral, salvar sua própria cria de si mesma, de sua tristeza abismal e de sua sensibilidade mortal.

era, sem sombra de dúvida, a mais impotente das pessoas dentro de um táxi indo pra casa depois de um coquetel cheio de pró-seco. pegou o celular e ligou pra própria mãe. caiu na secretária. com a voz embargada, deixou um recado:

- mãezinha, é só pra te dizer que eu estou bem, que tenho comido direitinho e que vou passar o fim-de-semana com vocês.

prometeu a si mesma que nunca mais deixaria um telefonema por dar.

Firmina e Norberto

a terapeuta de casais havia dito para firmina e norberto que eles precisavam destinar pelo menos uma manhã por semana para cultivar a relação. como já eram casados há 10 anos, resolveram obedecer.

a ordem era não ter pressa de sair da cama e nem de escovar os dentes. firmina, filha mais velha de mãe solteira, neurótica desde criancinha, não conseguia dormir pelas manhãs, nem nas de sábado. começou então a procurar o que fazer, já que acordava primeiro e não podia escovar os dentes, nem fazer café, nem multiprocessar todas as informações do mundo, do condomínio, das crianças e das 4 irmãs solteiras que viviam a lhe contar suas peripécias sexuais e a lhe dizer que era melhor estar casada do que solteira porque as casadas ainda tinham o benefício do divórcio.

logo relembrou de um esporte espetacular que não praticava desde solteira: olhar por debaixo das cobertas enquanto norberto dormia e ficar a observar o sono pesado daquele homem todo nu, que depois de 10 anos não tinha ficado barrigudo nem careca nem broxa nem metrossexual. saiu do sedentarismo para entrar pro mundo das sortudas. norberto podia demorar o tempo que fosse pra acordar que não tinha mau tempo. como se tratava do primeiro sábado de inverno e firmina estava bastante empolgada com a nova velha vida de desportista, resolveu citar a poesia de zeca baleiro no momento em que o pai de seus filhos abriu os olhos:

- hoje eu acordei com uma vontade danada de mandar flores ao delegado, de bater na porta do vizinho e desejar bom dia, de beijar o portugûes da padaria.

- quê isso, mamãe? pirou? flor pro delegado? de onde? da décima nona?

firmina só ria. na verdade gargalhava da barriga doer. norberto, ainda sonolento - mas ciente de se tratar de uma manhã de sábado, resolveu entrar na onda:

- e vem cá, qual vizinho? seu vladimir? ele não gosta da gente! diz que as crianças resolvem começar a gritar sempre depois das 10 da noite!

firmina percebeu que aquilo era muita metáfora para ele e, para evitar maiores explicações, resolveu calar a boca do seu homem utilizando seus artifícios de fêmea habilidosa. como se tratavam de ordens médicas, norberto, que já gostava mesmo daquilo tudo, acabou aceitando de bom grado a investida precisa da esposa. depois de mais ou menos 45 minutos de esportes intra-aeróbicos, ainda intrigado, afirma:

- não gostei desse negócio de beijar português da padaria não, mamãe! sabe como é esse povo da vizinhança! daqui a pouco tá falando de você e daí vou ter que me meter e aí quando eu fico nervoso, o bagulho pesa!

pela primeira vez, firmina entendeu racionalmente o quanto seu maridinho era maravilhoso. foda-se se ele não conseguia alcançar a poesia de zeca baleiro. isso era o de menos. ainda tinha outra coisa: ela podia tirar onda de poeta sem ter que dar os créditos. e o mais importante era que aquele homem ao seu lado era um pai bacana de 3 filhos, cheio de cabelo, sem barriga, sem frescura e de pau duro pra toda obra.

na manhã de segunda, enquanto sorria e dirigia rumo ao trabalho, ao som do baleiro, resolveu mandar flores para a teraupeuta, essa maga que com uma simples dica tinha feito ela perceber que em time que está ganhando não se mexe jamais. muito menos durante a temporada de inverno.

O campari de domingo (só ele é assim)

paulette tinha tomado uma decisão firme. quase nunca fazia isso. não gostava de não poder voltar atrás. preferia ter um leque amplo de opções sobrepostas umas às outras, para que pudesse manter um vir-a-ser inesgotável, uma eterna imanência. mas havia chegado a hora de começar a curtir a vida com o mesmo afinco que dedicava ao trabalho. era apenas deixar o corpo ir, que a alma trataria de acompanhar.
chamou sua amiga mais cúmplice e foram rumo à disneylândia existencial, com o objetivo único e exclusivo de se divertir com os meninos errados. acabaram optando pela zona norte, por ser menos asséptica. em menos de duas horas já tinham virado tema e centro e quadrado da hipotenusa. eram as próprias donas da situação, mais poderosas que qualquer trio de arbitragem. precisavam apenas estar disponíveis e à flor da pele, para se sentirem confortáveis na posição de musas. pode parecer simples no posto nove, mas em madureira ser musa era outra coisa: exigia atitude, rebolado e curvas passíveis de feijoadas com orelha de porco. era preciso também ter tomado sol na laje. não era pra qualquer uma virar musa dos poetas inconcretos, dos artistas de palco improvisado, dos cineastas com filmografia em vhs. era preciso aprender a ser imprescindível, a não ser mais uma das infinitas gostosas que vêm embrulhadas para presente em vestidos de sensualidade previsível, facilmente digeríveis por gregos acomodados e troianos insípidos, desses que já perderam a capacidade de sentir alguma coisa além do óbvio. o cansaço blasé já havia feito estragos suficientes. era tempo de cerveja com churrasco, de sábados dormidos em camas de solteiro alheias às suas. na verdade era tempo de sábados suados em camas de solteiro alheias às suas, porque dormir era coisa pros domingos, depois de tudo, quando voltavam para as suas casas e faziam um balanço do fim-de-semana carne ao ponto e bola na rede.
dali em diante, para paulette e sua amiga cúmplice, os domingos seriam para verificar os avanços nas suas recém-iniciadas carreiras de musas zona norte. assim, poderiam brindar àquilo tudo que passou, porque suas almas precisavam de alguma coisa além da beleza pura, simples e politicamente correta. e também porque a geografia de suas vidas podia até começar na gávea, mas nunca, de forma alguma, terminaria na lapa. nem em santa teresa.
e para aplacar o vazio inevitável dos domingos que sucedem os sábados cheios, o brinde tinha que ser com a única bebida capaz de tirar o gosto da cerveja, da poesia e das camas de solteiro suadas: o bom e velho campari.
não é toa que dizem que só ele é assim.