quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O peso e a leveza

O peso é pros papéis não voarem

É a desculpa da escrivaninha pra própria desordem

A leveza é a natureza do papel

É a desculpa da escrivaninha pra existência das pastas

O peso, como precursor das pastas, é estágio probatório

A leveza, como voo imaginário de papéis, é estágio avançado

Juntos desde sempre, já não tentam mais arrumar desculpas para ainda estarem casados

Simplesmente coexistem, ansiosos pelo futuro

Como papéis em branco na infinita procura de qualquer coisa que lembre uma assinatura

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O vaticínio

-Ele é aquele tipo Simpatiquinho da Estrela, sabe?
-Sei.
-Daí não deu duas cervejas e já tava partindo pra dentro.
-Hahahahahahaha.
-Daí, escuta só.
-Hahahahahahaha. Simpatiquinho da Estrela! Hahahahahaha.
-Cara, para de rir e escuta!
-Aiiiiiiiiiiiiii. Fala.
-Daí eu não fiquei muito a fim, ele tinha um cheiro de creme de barbear mal-tirado, sabe assim?
-Hahahahahahahaha
-Cara, nada que eu falei é tão engraçado, vai!
-Aiiiiiiiiiiiii. Hahahahahahaha.
-Você fumou, gata?
-Não! Aiiiiiiiiiiiiii. Tô de riso froxo.
-Pera que agora é que vem o melhor.
-Tá, aaaaaiiiiiiiiiiiiii, deixa eu respirar um pouco, meu abdômen tá doendo.
-Tá precisando fuder hein, nega.
-Para com isso!
-Sério, tá muito sem fôlego você. Quanto tempo sem fuder?
-Que horror essa boca suja sua, por isso que não arruma namorado!
-De que adianta namorar, me diz?
-É bom ter a companhia de um homem, vai. E olha, vou dizer pra você, que ninguém nos ouça: é sensacional não ter mais que trocar lâmpada. Quando Adalberto trocou a primeira lâmpada aqui em casa foi que me senti casada, pra você ver.
-Serinho, amiga, diz pra mim, você sabe que eu não falo pra ninguém...
-Ai, para de querer saber da minha vida íntima.
-Quanto tempo sem fuder, diz.
-Tsc.
-Diz.
-Seis semanas.
-Tá vendo? Quis arrumar namorado, deu nisso, acabou arrumando marido e tá aí, contando abstinência em semanas, pra parecer que é menos tempo, fala sério!
-Você é muito radical...
-Bicha, do jeito que a coisa anda, tá super valendo ficar sozinha, na boa. E tem mais: eu gosto de fuder, sou puta, sim, chupo que é uma coisa. Se eu tiver com sede então, o individuo objeto de minha devoção se dá bem. Tenho isso até em vídeo, gata, posso provar.
-Eu passo.
-Ótimo, não ia te emprestar mesmo.
-Mas conta do cara.
-Então, como eu não tava muito a fim, fui deixando isso claro, porque ele vinha naquele esquema de mãozinha nas costas, pegadinha na cintura, enfim, todas essas coisas que quando a gente tá a fim são ótimas, que daí rola aquela afliceta, o carinha pegando na pedrinha do seu anel, na pontinha da sua unha, você umedece, delícia, quem não gosta? Foda é quando você não tá a fim.
-Total.
-Na quarta mãozinha eu já tava como...
-Daquele jeito...
-Pois é.
-Péssimo isso, hein, querida.
-Mas sempre pode ficar pior, filha.
-Jesus amado!
-Escuta: fui ao banheiro me recompor de tanta mãozinha, que até alisada na barriga eu tomei, tá? O lance todo é que ele é amigo do meu chefe, sabe assim? Não posso mandar ele tomar no cu nem se fuder nem enfiar nada em lugar nenhum.
-Se acalma, você está ficando descontrolada!
-Você é o tipo de pessoa que jamais poderia trabalhar com o Almodóvar...
-Eu sei disso, coração.
-Mas enfim, como você quer que eu fale? Que eu não podia ralhar com ele, que ele é amigo do meu chefe?
-Hahahahahahahahahaha.
-Caralho, vai começar a rir de novo, porra, vou te dar um vibrador de aniversário, amada, que nem Jesus te salva dessa.
-Hahahahahahahahahaha.
-Quê é isso, meu Deus? Se controla, criatura!
-Hahahahahahahahaha.
-Geeeeeeeeeeente, quer uma água?
-Aaaaaaaaaaaaiiiiiiiiiiiii, quero sim. Ai, amiga, ralhar foi foda, vai.
-Lógico, não posso falar nada que você fica nessa de horror. Pra assistir ‘Um convidado bem trapalhão’ só em cima do urinol, né?
-Hahahahahahahahahaha.
-Chega, vou nessa, perdeu a graça, você não me escuta.
-Hahahahahahahaha.

Foi andando em direção à porta, fingindo que estava puta, só pra zoar a amiga, até porque já era tarde e as duas tinham o péssimo hábito de acordar cedo.

Já recuperada, na porta do elevador, a risadinha pergunta:

-Mas você não contou do bofe! Resume, vai.
-Nem precisa de resumo que a coisa toda foi muito rápida, ele disse: ‘pô, você fez educação física, é?’ Aí eu: ‘é’. Aí ele: ‘Pô, nem parece’. Daí, na hora de falar o ‘nem parece’ deu aquela sacada de açougueiro, sabe assim?
-E ele era gostoso?
-Nem depois da terceira michelada, mas, como ele mandou essa, já tava justificada a saída pela tangente, que se meu chefe perguntasse alguma coisa, eu diria logo que ele me chamou de gorda e isso já é o bastante pra qualquer mulher sair de qualquer lugar, ainda mais quando esse lugar é ao lado de um boçal.
-Hahahahahahaha.

Volta e meia se encontram, até porque Adalberto viaja um bocado, é comissário de bordo.

Olhando assim, parece até que o aeromoço não quer descomprimir na cabine da esposa, nem enfrentar, feliz, turbulências e confusos horários.

Que nada, Adalberto é do tipo que comparece sempre que chega de viagem e adora colocar o despertador pra mais cedo só pruma rapidinha matinal.

Por isso se faz de distraída pra amiga. Nem consegue imaginar o que aconteceria se aquela centrífuga soubesse do manga larga disfarçado de bom moço que tinha em casa.

Se quem come quieto come duas vezes, pra comer sempre, é melhor dar de mal-comida.

Afinal, como vaticina Vera Loyola, amigo é quem atura seu sucesso.

domingo, 13 de setembro de 2009

Para Roberta

Lia livros na língua original aos 15 anos

Morava na única casa com piscina da turma

Dava cola na prova de história

Quase não descia pro pátio no recreio

Atolada com esportes de bola

Órfã de pai

Médica

Querida

Reapareceu no orkut depois de vinte anos pra dizer que curtia meu blog

Achei, sinceramente, que íamos nos rever para jogar conversa fora e lembrar do tempo em que problema era tirar média oito e se esconder dos meninos que nos achavam medonhas

Achei que poderia te mostrar a camisa mofada do último dia de aula, cheia de dedicatórias

Achei que só íamos chorar se fosse de tanto rir

Mas a brincadeira acabou

Estamos todos de castigo

O teu é não poder mais comentar meus textos

O meu é ter de engolir a seco monólogos que sempre te roubavam meios-sorrisos

É aceitar que de ti, a partir de agora, só tenho lembranças

E um link para lugar algum

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

As amigas de Ana (pro Clube da Leitura)

As amigas de Ana fazem dela várias. Tudo que Ana não viveu até hoje, seja por falta de oportunidade, de coragem ou de sorte, o fez por intermédio de suas amigas, que não são muitas, mas suficientes. Na escola só teve Lúcia, graúda abusada, tipo vulcão engarrafado. Juntas, trocavam confissões roubadas das irmãs mais velhas e, se duvidar, até hoje lembram do desamparo que era a hora da música lenta nas festinhas.

Na faculdade foi quando tudo começou de fato: a paixonite por um professor, as pegações nas chopadas, as histórias memoráveis, as amnésias inenarráveis, as coisas ditas em excesso e as mentiras mofadas, que, como grinaldas herdadas, ainda esperam por um pretérito perfeito.

Já mulher feita, Ana começou a frequentar casamentos demais e a ter de assistir suas melhores amigas partindo, seja para outros países, seja para o mundo dos maridos preocupados somente com o resultado do futebol, mesmo em se tratando de Quinze de Jaú contra Quinze de Piracicaba.

Quando entendeu o amor à distância, conseguiu perdoar as amigas que só se casaram por medo de camas vazias, e, naturalmente, parou de se constranger com as mães delas, sempre a bradar sobre o absurdo de uma moça tão bonita ainda estar solteira.

Como nem tudo é bege o tempo todo, Ana ama os poucos maridos que fazem felizes suas amigas e que gostam de recebê-la pruma cerveja aos domingos, para ficarem todos bêbados e atordoados com a bagunça das crianças, que insistem em crescer como samambaias choronas bem regadas.

Lá no fundo, mesmo sem admitir pra ninguém, Ana adoraria encontrar um homem assim: sensível, companheiro e imperfeito, que goste de Quinze de Jaú contra Quinze de Piracicaba, mas que não dispense poemas nem massagens nos pés.

Porque é disso que moças como Ana gostam: da imperfeição concreta e dos domingos bêbados.

domingo, 6 de setembro de 2009

Coisas de Antônio Torres

Trechos de “Um cão uivando para a Lua” (1972), romance de estreia de Antônio Torres

-Diz que você me ama, nem que seja mentira. Dizzz. Eu preciso ouvir isso. Preciso, preciso. Diz, diz. Você me ama? Você me ama? Ai. Vou morrer. Eu morro. Mor-ro. Diz de novo, nem que seja mentira.
-Você é completamente louca, mulher. Você me mata. Mas vou morrer feliz. Juro.
E tudo recomeçava
-Você me ama? Diz, nem que seja mentira. Diz de novo. Isso-é-tão-bom...
Caí para um lado da cama e a mulher começou a chorar.
Acordei.
Lila, Lila, Lila! Onde está você?

Acendo a luz e fico sentado na cama. O meu quarto tem uma mesa cheia de remédios, papéis rabiscados, alguns livros, papéis em branco e muitos envelopes. Estou todo molhado. Que horas serão? Bom, e que importância tem isso? Estou passando pelo tempo, estou sendo devorado pelo tempo. Pego uma toalha e me enxugo. É dezembro, parece. As ruas estão mais barulhentas do que nunca. E eu no mesmo lugar.

Chego em 1971 com 28 anos de idade e um nó na garganta.

Ainda assim prometo cavar no fundo da minha angústia alguma sobra de energia, não de todo estragada, para empregá-la até a última gota nas possibilidades de amanhã. Sei. Tudo isso é muito desagradável. É duro demais você assumir a sua própria dor.

Enquanto o sono não vem, escrevo uma carta pra Lila.
Crioula.
Já recebi uma tonelada de propostas. Uma de um velho amigo que acaba de chegar da Europa e me propôs ver os slides que ele fez. Garantiu-me ter batido umas fotos incríveis. Oferta extra: Jantar e uísque ou vinho, à minha escolha. Outra, foi de um sujeito que quer porque quer me mostrar um filme que ele fez com as crianças na praia. Um terceiro quase me mata porque eu recusei um convite para dar umas voltas em seu Opala, pelo Minhocão. Achou um absurdo um cara vindo do Rio não querer ver São Paulo by night. Não posso enumerar tudo. A memória não está ajudando.

Nos povoados, nas cidadezinhas, onde quer que houvesse uma casa, havia sempre um número incrível de crianças. Eu perguntava a idade de uma, ela fazia um gesto negativo com a cabeça. Não sabia. Então o pai, ou a mãe, respondia: 10, ou 11, ou 12 ou 9. Todas pareciam, porém, ter metade da idade que tinham. Era doloroso ver todos aqueles meninos barrigudos e com o tamanho do corpo inteiramente desproporcional ao tamanho da cabeça. Mas não era apenas neles que eu estava pensando. Isso também era outra coisa que eu já tinha visto antes, no Sertão, no Junco.

Eu já tinha sido um daqueles meninos, eu era a soma deles todos.

O dia que eu contei a Lila sobre o menino que eu fui, ela se ajoelhou a meus pés e beijou meu pau. Foi uma dose forte demais. Lila, quando menina, teve uma educação. Como se apresentar. Como andar. Como sentar à mesa. Como cumprimentar. Como dormir, como acordar. Tudo isso para debutar no Country Club. Tudo isso porque ela era uma moça de família, até, é claro, quando descobriu que trepar era o melhor de tudo e o resto não tinha a menor importância. Eu não sei falar de Lila usando palavras normais do vocabulário educado, porque Lila é uma tremenda puta, porque é putamente sensível, inteligente e louca. Naquela noite, em que ela, com reverência (quase digo com contrição), se ajoelhou para me prestar aquela homenagem pagã, eu descobri ter afinal encontrado alguém que chegara ao exagero de me elevar à categoria de herói. Pura e simplesmente pela simples condição de ainda estar vivo – e sendo capaz de funcionar.

Agora eu compreendia o significado de tudo.

Mais tarde, voltei a pensar em Lila e me perguntei até que ponto ela estava compreendendo a extensão de minhas dificuldades, chegando a temer que ela qualquer dia desses se cansasse de tantos trancos e barrancos. Eu já tinha vivido tempo suficiente para ter descoberto que as mulheres, de modo geral, procuram fugir de homens negativos, aqueles que estão sempre a braços com encrencas pessoais e demasiadas encucações, sem considerarem as causas e circunstâncias que os arrastam para baixo. Vislumbrei essa possibilidade como se estivesse avistando um terremoto. Sim, eu a amava. Não queria perdê-la.

Minha memória é uma cova funda onde enterrei todos os meus mortos.
Minha cabeça é uma montanha esburacada, por onde escoam todos os detritos do mundo.
Meu coração não bate, apanha.
E os meus pés estão sempre tropeçando.
Pára, pensamento, pára. Um instantinho só, por favor. Preciso esquecer.
O quê? Tudo
Chega de sofrimento, quero o alento.
É a memória – e não a dor – que faz você se lembrar de centenas de ruas selvagens e ermas.
Li isso em “Luz de Agosto”, mas já faz muito tempo.
Cite um absurdo.
O brado retumbante.
Outro.
Um homem rastejante.
Mais outro.
O céu da pátria nesse instante.
Cite o pior de todos.
A morte.
Diga qualquer coisa.
A paz a gente só encontra na morte ou quem morre acaba?

-Quem está aí com você?
-Ninguém
-Mas você está falando com alguém.
-Sim. Comigo mesmo. Posso?
-Está falando sozinho, então?
-Conforme o costume. Posso?
-Acho melhor você vir atender o telefone. É melhor do que ficar aí falando sozinho.
-Obrigado, já vou.

Sim, eu fazia uma porção de coisas, desde pequeno, mas a impressão que me deixavam era a de que não sabia fazer nada. Então, menino ainda, passei a declamar Castro Alves em praça pública, em dia de festa de escola e o povo dizia: -Menino danado. Foi assim, doutor, que descobri que queria ser jornalista. Eu sabia o que os outros não sabiam. A partir da descoberta disso, passei a ser perdoado por não ser bom no cabo da enxada. Entende? O senhor está entendendo agora?
-Amanhã você me conta o resto - disse ele. - Preciso sair.
E foi embora.
Fiquei andando pelo pátio, sozinho, sem pensar no que diria a seguir, nem no que tinha que fazer.
Eu leio os jornais todos os dias, meu chapa, e já não me inquieto com isso. Vejo as coisas e não sinto mais vontade de vomitar. Eles falam, eu escuto. Pra mim, chega. Acho que não vale a pena espernear.

No céu, algumas estrelas brilhavam e eu achei que o negócio era comigo. Um cão, que passara o tempo todo gemendo para a Lua, agora sorria.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Muita calma nessa hora!

-Menina, meu Santo Antônio caiu sozinho do altar...
-Não!
-Não sei que tipo de sinal o Além está me enviando, mas não me parece boa coisa...
-Muita calma nessa hora!
-Pra piorar, outro dia a faxineira aqui de casa deu um varridão no meu pé que cheguei a sentir a piaçava invadindo a cutícula, sabe assim?
-Sei...
-Fudeu, amiga, num vou casar mais é nunca!
-...
-Diz alguma coisa, pelamordedeus!
-Lógico!
-O quê é lógico?
-Como não pensei nisso antes?
-Nisso o quê?
-É um sinal mesmo, gata!
-Do quê?
-De que esse moço com quem você tá entusiasmada, o pesquisador de conteúdos, não é o cara!
-Mas isso lá é motivo pro Santo dar um mosh?
-Olha a blasfêmia! Vê lá se Santo dá mosh!
-Tá, desculpa, é que tô nervosa com isso...
-Eu sei, amiga, mas me conta do Santo: ele tá destroçado?
-Não, deu uma rachadinha só no braçinho do menino Jesus.
-Ahhhhhhhhhhhhhhhh.
-Fala!
-Só o menino Jesus que rachou?
-Só.
-Então tá explicado!
-Num tô entendendo nada.
-Fica fria, se foi só o menino Jesus que deu uma raladinha com o tombo, talvez tenha sido apenas um aviso pra você se cuidar pra não engravidar do pesquisador de conteúdos, já que ele não é o cara...
-Mas nós usamos camisinha.
-Ótimo.
-E eu sou super certinha, alio camisinha e tabelinha.
-Se você acha suficiente...
-Em 39 anos nunca engravidei, acho que tá bom, né?
-É um bom parâmetro.

Ficaram ali cotando o pesquisador de conteúdos, fazendo listas de prós e contras, como se o problema realmente estivesse com ele, ou com Santo Antônio, ou com a vassoura de piaçava.

Uma hora iam entender que o Além não manda recado por Santo nenhum e que as coisas boas da vida acontecem justamente quando a gente nem tá esperando por elas, já que, como reza o dito popular, o que é nosso está guardado.

A sete chaves.

Pra ser aberto só quando estivermos prontos.

Porque ser feliz também dá trabalho.