quarta-feira, 29 de maio de 2013

3D (pro Clube da Leitura)



Meu amor, hoje minha fotógrafa preferida me puxou pruma conversa. Confesso que me deu um arrepio na espinha, pensei que a coisa ia virar aquele papo mole que não acaba até a hora de alguém se aborrecer ou dizer que está tudo bem mesmo não estando, sabe como é? Eu acho que você sabe, você tem esse jeito de quem ri com o fígado, uiva pra lua e sonha em preto e branco, mas, voltando à vaca fria, eu disse um monte de verdades pra ela, que eu preciso de espaço e de tempo, como toda modelo que se preza. Falei também que gostava de atenção e de carinho, que sou dengosa, ora bolas. Devo ter feito um bico tão grande que ela resolveu me levar pruma reunião de pauta de uma das revistas que ela trabalha. No caminho, no vagão de mulheres do metrô, ela me explicou que, dentro do processo criativo dela, a foto posada, do tipo que eu faço, apesar de ser mais difícil de ficar bonita, demorava menos tempo pra ficar pronta, enquanto que a foto espontânea, o flagrante, demandava mais trabalho na captação, mas que, de um modo geral, ficava mais fluida, por conta de se inspirar no cotidiano, na vida do homem comum e coisa e tal. Comentou também que a foto de moda é aquela que lemos com os olhos da alma sem que nos falte o ar. Foi ela dizer isso que chegamos na estação e, em menos de cinco minutos, numa sala enorme dentro de um prédio bem antigo, desses onde os móveis têm cheiro de Rua do Lavradio. As pessoas estavam sentadas em um grande círculo, esquema primeiro dia de aula e, quando pediram pra ela apresentar sua ideia praquela semana, saí pra dar uma volta, que não gosto de ouvir a mesma história várias vezes. Pois bem, nessa volta, me pus a andar. O fato é que andei tanto, mas tanto, que acabei parando numa sala com uns rádios da época em que vovó era mocinha. Muito bacana mesmo. Eu fiquei tão empolgada, mas tão empolgada, que liguei o aparelho mais bonito de todos só pra ver se ele ainda funcionava e qual não foi minha surpresa ao ver que ele não só funcionava perfeitamente como também tocava um bolero justo naquela hora. Achei que estava sonhando e, portanto, pedi pruma faxineira que passava no corredor me beliscar. Ela me olhou de um jeito estranho e na hora me lembrei daquela doença que um dos sintomas é a perda da sensibilidade da pele, como é mesmo o nome? Hoje em dia o troço até tem cura, mas antigamente era um horror, os doentes eram jogados em sanatórios, que a coisa era contagiosa, meu deus, como se chama mesmo o raio dessa moléstia? Bem, isso, definitivamente, não importa agora, até mesmo porque a dona, apesar de ter me achado doida, não foi louca o suficiente de me perguntar por que eu estava pedindo aquilo. Deve ter pensado que eu era artista e foi logo me beliscando sem cerimônia. Como doeu muito, vi que não estava sonhando e foi exatamente nessa hora que pensei em você, meu amor, porque bolero é coisa de quem vê com os dedos e escreve com a boca. Mas o melhor ainda estava por vir. Depois desse passeio incrível, voltei pra tal da reunião, que parecia estar acabando, pois as pessoas estavam todas de pé, com aquele jeito de pendurar a bolsa que só quem tá a fim de ir embora pendura. Fiquei ali no meu canto esperando minha fotógrafa predileta quando vejo uma moça vindo na minha direção. Cheguei a olhar pra trás pra ver se era mesmo comigo e de repente ela veio e disse: "Você é a modelo da capa do mês passado, não é?" Na hora minha reação foi sair correndo, como uma louca que acaba de cometer um assassinato. A única coisa que me veio à mente foi beijar-te, meu querido. Justo nesse momento vi que não fazia mais sentido negar-te a escrita dos meus fluidos, a poesia das minhas bactérias, o haicai do meu bafo matinal. Agora aqui estamos, separados pelo nosso maior desejo. Não é à toa que sou modelo. Sei posar, mas não sou capaz de ser real num mundo 3D. 


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