Meu amor, hoje minha fotógrafa preferida me
puxou pruma conversa. Confesso que me deu um arrepio na espinha, pensei que a
coisa ia virar aquele papo mole que não acaba até a hora de alguém se aborrecer
ou dizer que está tudo bem mesmo não estando, sabe como é? Eu acho que você
sabe, você tem esse jeito de quem ri com o fígado, uiva pra lua e sonha em
preto e branco, mas, voltando à vaca fria, eu disse um monte de verdades pra
ela, que eu preciso de espaço e de tempo, como toda modelo que se preza. Falei
também que gostava de atenção e de carinho, que sou dengosa, ora bolas. Devo
ter feito um bico tão grande que ela resolveu me levar pruma reunião de pauta
de uma das revistas que ela trabalha. No caminho, no vagão de mulheres do
metrô, ela me explicou que, dentro do processo criativo dela, a foto posada, do
tipo que eu faço, apesar de ser mais difícil de ficar bonita, demorava menos
tempo pra ficar pronta, enquanto que a foto espontânea, o flagrante, demandava
mais trabalho na captação, mas que, de um modo geral, ficava mais fluida, por
conta de se inspirar no cotidiano, na vida do homem comum e coisa e tal.
Comentou também que a foto de moda é aquela que lemos com os olhos da alma sem
que nos falte o ar. Foi ela dizer isso que chegamos na estação e, em menos de
cinco minutos, numa sala enorme dentro de um prédio bem antigo, desses onde os
móveis têm cheiro de Rua do Lavradio. As pessoas estavam sentadas em um grande
círculo, esquema primeiro dia de aula e, quando pediram pra ela apresentar sua
ideia praquela semana, saí pra dar uma volta, que não gosto de ouvir a mesma
história várias vezes. Pois bem, nessa volta, me pus a andar. O fato é que
andei tanto, mas tanto, que acabei parando numa sala com uns rádios da época em
que vovó era mocinha. Muito bacana mesmo. Eu fiquei tão empolgada, mas tão
empolgada, que liguei o aparelho mais bonito de todos só pra ver se ele ainda
funcionava e qual não foi minha surpresa ao ver que ele não só funcionava
perfeitamente como também tocava um bolero justo naquela hora. Achei que estava
sonhando e, portanto, pedi pruma faxineira que passava no corredor me beliscar.
Ela me olhou de um jeito estranho e na hora me lembrei daquela doença que um
dos sintomas é a perda da sensibilidade da pele, como é mesmo o nome? Hoje em
dia o troço até tem cura, mas antigamente era um horror, os doentes eram
jogados em sanatórios, que a coisa era contagiosa, meu deus, como se chama
mesmo o raio dessa moléstia? Bem, isso, definitivamente, não importa agora, até
mesmo porque a dona, apesar de ter me achado doida, não foi louca o suficiente
de me perguntar por que eu estava pedindo aquilo. Deve ter pensado que eu era
artista e foi logo me beliscando sem cerimônia. Como doeu muito, vi que não
estava sonhando e foi exatamente nessa hora que pensei em você, meu amor,
porque bolero é coisa de quem vê com os dedos e escreve com a boca. Mas o
melhor ainda estava por vir. Depois desse passeio incrível, voltei pra tal da
reunião, que parecia estar acabando, pois as pessoas estavam todas de pé, com
aquele jeito de pendurar a bolsa que só quem tá a fim de ir embora pendura.
Fiquei ali no meu canto esperando minha fotógrafa predileta quando vejo uma
moça vindo na minha direção. Cheguei a olhar pra trás pra ver se era mesmo
comigo e de repente ela veio e disse: "Você é a modelo da capa do mês
passado, não é?" Na hora minha reação foi sair correndo, como uma louca
que acaba de cometer um assassinato. A única coisa que me veio à mente foi beijar-te,
meu querido. Justo nesse momento vi que não fazia mais sentido negar-te a
escrita dos meus fluidos, a poesia das minhas bactérias, o haicai do meu bafo
matinal. Agora aqui estamos, separados pelo nosso maior desejo. Não é à toa que
sou modelo. Sei posar, mas não sou capaz de ser real num mundo 3D.
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