terça-feira, 25 de maio de 2010

Provas


Dedos pedem passagem

Bocas abrem alas

Línguas fazem bailes

Pernas abrem apetites

Todo esforço é bobagem

Pra passar com gala

Nas provas de anatomia em braile

Do reino de Afrodite

segunda-feira, 17 de maio de 2010

A força


*imagem: Clube do tarô
Espera por respostas que nunca virão

Procura cabelo em ovo de páscoa

Adivinha o imponderável

Pede pra descer antes do ponto

Dia desses aprende a pedir desculpas

Mesmo sendo tarde demais pra começar

Ou cedo demais pra desistir

domingo, 9 de maio de 2010

A lavanderia


*imagem: Revista Mirroir



O cenário é a casa de uma. A bebida, o vinho da outra. O motivo do encontro não tinha ficado muito claro pra nenhuma das duas, mas era o que menos importava. Há mais ou menos trinta minutos, uma delas monologava sobre como o roçar de pés com o ex-namorado durante a conchinha pós-coito lhe aquecia as entranhas.

Nesse momento, a que ouvia se arrisca no verbo, rumo ao abismo das coisas indizíveis.

-De repente isso aí é saudade.
-Sabia que a saudade é um substantivo tão abstrato, mas tão abstrato, que só tem na língua portuguesa?
-Mas já?
-Já o quê?
-Já mudou de assunto?
-Como assim?
-Amiga, você pelo menos ouviu o que eu te disse?
-Que isso é saudade?
-Sim!
-Menos, darling.
-Não quer falar sobre a questão, né?
-Não, que isso nem é assunto.
-Sei.
-Será que você sabe mesmo? Porque é fácil falar que eu tô fugindo dessa ou daquela situação, quero ver é se colocar no meu lugar.
-Vamos abafar o caso, ok? Escuta, você soube do Alexandre?
-Qual Alexandre? O que namorou Vânia?
-Não, o que foi casado com Marília.
-Como assim, foi casado? Eles se separaram?
-Não sabia?
-Não, aconteceu algo?
-Ninguém sabe, parece que foi amigável a coisa.
-Menina, os casamentos estão se desmanchando numa velocidade, né?
-É...
-Qual foi?
-Nada, gata, só tô refletindo sobre o que você disse.
-Sinto uma certa falta, ok, mas não dele, e sim do que ele representou por um determinado espaço de tempo. E daí? Isso faz de mim uma sofredora, uma fraca ou o quê?
-Não faz de você nada, amiga, essa sensação de fracasso é normal, pelo menos nesse momento inicial, afinal, tem quanto tempo que vocês terminaram?
-Vai fazer dois meses amanhã.
-Tá vendo?
-Ainda tô no prazo de validade da melancolia, né?
-Não sei se é isso.
-É o quê, então?
-Não sei se existe um prazo de validade pressas coisas, só sei que é sempre melhor quando tudo se encaixa perfeitamente e o desfecho é incrível, mas o fato é que não rola sapatinho de Cinderela tamanho 39, né, amada?
-Hahahahahaha.
-Ri não, meu pé aumentou muito depois de adulta. Eu era 37, depois fui ficando 38. Agora, tênis pra caminhar, só 39. Pensa na situação. Daqui a pouco tô passando de travesti nas sapatarias.
-De todo modo, curti a metáfora da Cinderela.
-Não é metáfora, é realidade.
-Ah, para de pessimismo, bonita, que isso é gênero que você faz!
-Falta só fazer o número e o grau agora, pra completar a trilogia da concordância, que tal?
-Você não existe.
-Existirmos, a que será que se destina?

Pelo visto, a roupa suja ia continuar sendo lavada madrugada adentro, que esse negócio de negação é até bacana nas vernissages do pessoal cool, mas extremamente cafona entre aquelas duas.

Afinal, se a fila anda e o caixa é rápido, é preciso ter a consciência bem trabalhada de que o coração é um músculo involuntário só até a página dois.

E de que quem passa imagem é scanner.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

O claro e o escuro (pro Clube da Leitura)


*imagem: Tara Mc Pherson


Francisca sempre foi sinônimo de sucesso: passou em primeiro lugar na faculdade de Biologia e se formou com louvor. Ainda estudante, fez arrojadas descobertas a respeito da relação entre o uso de sundown 60 e a coloração das células epiteliais em pessoas de pele sardenta e, aos poucos, foi pendendo para o lado da pesquisa em estética. Logo após a formatura, começou a trabalhar num hospital especializado em queimados, onde, naturalmente, era cúmplice de cenas tristíssimas. Por conta disso e de sua natureza muito sensível, acordava aos prantos quase toda manhã. Preocupados com seu estado emocional, seus colegas a encaminharam prum psiquiatra que detectou uma depressão funcional em decorrência do estresse. Como estava com férias acumuladas, uniu o útil ao agradável e foi passar duas semanas em Honolulu munida de quatro caixas de Prozac. O que ninguém esperava era que, mesmo sob o efeito de medidas tão drásticas, a moça fosse continuar na mais profunda escuridão. A coisa estava de tal forma complicada que nem sair do quarto durante o dia lhe era agradável. Francisca via tudo em preto e branco e fora de foco e, pra se ter uma ideia, nem filmes com Jerry Lewis conseguiam mais lhe arrancar sequer meios sorrisos. A maior crueldade do mecanismo depressivo não está somente no torpor no qual a pessoa fica submersa e, sim, principalmente, na falta de perspectiva de sair do buraco. A sensação que se tem é a de que a alma ficará pra sempre na horizontal, e, que, olhar pra cima, no intuito de vislumbrar um futuro, é tarefa para além de hercúlea.

Numa determinada manhã, ainda de férias, com os cabelos imundos e os dentes visivelmente saudosos de fio dental, foi abordada por um habitante local portador de exuberância única que, provavelmente movido por algo semelhante à piedade, a convidou para um passeio. Como estava mais pra inerte, voltou rastejando pro seu quarto de hotel, onde apagou a luz e ligou a televisão num canal de venda de jóias. Qual não foi sua surpresa quando, no meio da tarde, o mancebo bate à sua porta munido de uma garrafa de champagne e da chave de sua lancha. Por pura incapacidade de reagir, Francisca aceitou a investida e, metida num biquíni lamentavelmente puído, partiu rumo à experimentação subaquática da culinária local. Não se sabe exatamente se foi o tempero do rapaz ou o efeito da bebida misturada ao Prozac, mas o fato é que, pela primeira vez depois de muito tempo, viu de novo as cores que temia tivessem desaparecido de sua vida pra sempre. Tem gente que chama isso de orgasmo, mas, pra efeitos práticos, o que importa é o milagre e não o nome do santo. No dia seguinte, acordou com beijinhos e afagos no pescoço, ao que, já com o sangue limpo, rejeitou, pedindo apenas, em inglês macarrônico, que o rapaz a levasse de volta ao hotel.

Já no Brasil, para garantir que aquele lampejo de cura se transformasse em algo sólido, começou, em segredo, a se consultar com uma astróloga especializada em vidas passadas e, curiosamente, descobriu que, em sua primeira encarnação, tinha sido uma grande dançarina da Polinésia francesa. Depois disso, entendeu que a escolha do destino de suas férias foi providencial e, dali em diante, mesmo ainda com dificuldades para tirar cor de suas entranhas cinzas, procuraria andar sempre munida de bons pincéis.

Pra garantir, não comentou nada com o povo do hospital.

Afinal, ninguém por lá daria ouvido a astrólogos.


segunda-feira, 3 de maio de 2010

Dramaturgia mon amour (Otro e Corte Seco)


Durante Esperando Godot, de Samuel Beckett, em determinado momento, ouvimos da boca de um dos personagens um singelo: "Como o tempo passa quando a gente se diverte", frase que sempre me tocou profundamente, não só pelo contexto em que é dita (após uma brincadeira, no meio do nada rumo a lugar algum), mas, também, pela ode à alegria fugaz, mesmo que ingênua e aparentemente inútil.

Pois bem, nesse fim de semana, levada por amigas queridas (e gentilmente convidada por membros das equipes), acabei vendo o tempo passar de forma incrivelmente divertida e acidamente lancinante ao assistir a dois espetáculos dos quais saí acreditando novamente na dramaturgia pungente, dessas que tiram um raio-x sem dó nem piedade da raça humana, nos levando do riso nervoso à lágrima contida. Ao final, depois de acompanhar aqueles atores sem medo de ficar nus e nem de pegar uma gripe estética, eu já não me sentia tão constrangida pela extrema solidão a qual estamos todos condenados, mesmo na melhor das companhias.

Que nem criança, guardei os ingressos e, com a alma lavada, começo a semana.

Quem puder, não deixe de ir a nenhuma das duas peças.

Vocês vão ver: suas almas agradecerão.

terça-feira, 27 de abril de 2010

O anti-GPS

No dia em que assistiu a Brilho eterno de uma mente sem lembranças, Hermínia não fazia ideia do quão premonitório seria esse filme em sua vida. Jamais imaginou se deparar com o desejo de apagar uma pessoa da própria memória como se ela nunca tivesse existido, fazendo da trajetória percorrida a dois, desde os epifânicos momentos iniciais até o lamentável desconforto das cenas dos próximos capítulos, um souvenir sem prateleira.

Tudo isso é muito bonito no cinema, mas, pra uma mulher desse naipe, bem-resolvida até dizer chega e reverenciada nas rodinhas da galera, era difícil assumir uma coisa assim, até mesmo porque os cinco anos de terapia já deviam ter sido suficientes para fazê-la ver que, se algo a incomodava do lado de fora, era porque do lado de dentro tinha coisa de mesma intensidade querendo sair.

Já que o caso se assemelhava a uma partida de pôquer no inferno, da qual ninguém podia pedir pra fugir, resolveu colocar-se numa zona de conforto, onde passou a frequentar novos rapazes e a se desvencilhar de antigos mitos, como o de que só atraía homens fascinados por sua personalidade, mas incapazes de amá-la de fato. A sensação que tinha era a de que estava, inteligentemente, seguindo em frente e vivendo um dia após o outro. A coisa se mostrava tão promissora que, passados seis meses, a moça já era craque na arte do rastreamento, tanto que, antes de sair para determinado local, sabia de antemão se o figura estaria por lá ou não.

Tudo ia bem, como costumam ir bem velhas ideias movidas por novas tecnologias, quando, pra sua surpresa, desleixou no anti-GPS e deu de cara com o dito cujo numa festinha de desconhecidos em comum. Sabendo que seria deselegante voltar pra casa como quem esqueceu de alimentar o gato que não existia, subiu no salto e deu graças a Deus por ser menina e ninguém reparar na sua calcinha empapada. Depois da noite toda usando o carefree que teve de pedir a uma amiga, foi pra casa ver seriados americanos, já que a vida como ela era estava mesmo era dando no saco que nem tinha. Pra completar, ainda precisava aturar, na hora dos comerciais, a propaganda desses absorventes diários, sempre prometendo deixar secas e suaves mulheres como ela, esquecendo que, de modo geral, fêmeas preferem ficar úmidas e intensas, mesmo quando não há absolutamente ninguém a esperar-lhes na sacada de casa com condições para abarcar a encharcada demanda.

Na cama, já de banho tomado, vibrador em punho, pergunta a si mesma:

-Peraí, Hermínia, e os novos rapazes cheios de frescor e paudurescência?

Não precisou pensar muito pra concluir que, quando uma página não é de fato virada, novidades tendem a envelhecer quase que imediatamente.

Tudo culpa dos pequenos lábios que, quando falam, mandam o resto todo se calar.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Para perder um grande amor (pro Clube da Leitura)



foto: Elaine Olinda


Matar um grande amor é mais simples do que parece. Você mesma, sozinha em casa, tem condições de efetuar essa manobra. Os ingredientes são fáceis de encontrar e, de modo geral, costumam fazer parte da receita: dois dedos de discussão de relação, alguns meses de sexo burocrático, agendas fuxicadas e uma pitada de falsas esperanças. Depois, é só colocar tudo junto em banho-maria, esperar o cozimento e, rapidamente, o grande amor passa de cru a cozido, de vivo a morto.

O problema é que, mesmo depois de enterrado, ele não é esquecido assim tão facilmente. Primeiro, porque nossa alma vira porta-retrato da ternura perdida e passamos a ostentar a melancolia como um colar de pérolas falsas. Segundo, porque nos sentimos sem-teto mesmo dentro de casa e, terceiro, porque passamos a cuspir no prato que comemos, num cinismo vingativo que só serve mesmo pra provar que nosso assassinato foi em legítima defesa.

Há quem diga que o grande amor só acaba mesmo quando paramos de ter saudade dos planos feitos a dois. Dói saber que será com outra que ele terá filhos, casa de campo, netos, discos e histórias. Que as dedicatórias dos livros, de agora em diante, serão apenas palavras esvaziadas de sentido. Ou que o violão empoeirado no fundo da sala não mais empunhará acordes mal-tocados, que antes soavam como sinfonia aos seus ouvidos.

O pior é que nesses casos, a impressão que se tem é a de que seria ótimo poder voltar atrás e fazer tudo diferente. Ser mais disponível, menos imprevisível. E, principalmente, não ter tanto medo de dar o coração de bandeja, mesmo sabendo que, virado pro lado errado, esse músculo involuntário se transforma num pote de mágoa.

Mas o fato é que, como crianças que aprendem que antes de P e B só se usa M, preferimos nos focar no trabalho e na busca por um homem que caiba na fantasia de Cinderela pós-moderna que insistimos em vestir.

E, assim, na vã tentativa de provar a todo mundo que é melhor estar só do que mal acompanhada, pintamos os cabelos, mudamos o estilo de vida e nos enchemos de cremes anti-idade.

Como se isso mudasse o que vemos no espelho.

Ou o desejo de nos sentirmos novamente em casa.