terça-feira, 27 de abril de 2010

O anti-GPS

No dia em que assistiu a Brilho eterno de uma mente sem lembranças, Hermínia não fazia ideia do quão premonitório seria esse filme em sua vida. Jamais imaginou se deparar com o desejo de apagar uma pessoa da própria memória como se ela nunca tivesse existido, fazendo da trajetória percorrida a dois, desde os epifânicos momentos iniciais até o lamentável desconforto das cenas dos próximos capítulos, um souvenir sem prateleira.

Tudo isso é muito bonito no cinema, mas, pra uma mulher desse naipe, bem-resolvida até dizer chega e reverenciada nas rodinhas da galera, era difícil assumir uma coisa assim, até mesmo porque os cinco anos de terapia já deviam ter sido suficientes para fazê-la ver que, se algo a incomodava do lado de fora, era porque do lado de dentro tinha coisa de mesma intensidade querendo sair.

Já que o caso se assemelhava a uma partida de pôquer no inferno, da qual ninguém podia pedir pra fugir, resolveu colocar-se numa zona de conforto, onde passou a frequentar novos rapazes e a se desvencilhar de antigos mitos, como o de que só atraía homens fascinados por sua personalidade, mas incapazes de amá-la de fato. A sensação que tinha era a de que estava, inteligentemente, seguindo em frente e vivendo um dia após o outro. A coisa se mostrava tão promissora que, passados seis meses, a moça já era craque na arte do rastreamento, tanto que, antes de sair para determinado local, sabia de antemão se o figura estaria por lá ou não.

Tudo ia bem, como costumam ir bem velhas ideias movidas por novas tecnologias, quando, pra sua surpresa, desleixou no anti-GPS e deu de cara com o dito cujo numa festinha de desconhecidos em comum. Sabendo que seria deselegante voltar pra casa como quem esqueceu de alimentar o gato que não existia, subiu no salto e deu graças a Deus por ser menina e ninguém reparar na sua calcinha empapada. Depois da noite toda usando o carefree que teve de pedir a uma amiga, foi pra casa ver seriados americanos, já que a vida como ela era estava mesmo era dando no saco que nem tinha. Pra completar, ainda precisava aturar, na hora dos comerciais, a propaganda desses absorventes diários, sempre prometendo deixar secas e suaves mulheres como ela, esquecendo que, de modo geral, fêmeas preferem ficar úmidas e intensas, mesmo quando não há absolutamente ninguém a esperar-lhes na sacada de casa com condições para abarcar a encharcada demanda.

Na cama, já de banho tomado, vibrador em punho, pergunta a si mesma:

-Peraí, Hermínia, e os novos rapazes cheios de frescor e paudurescência?

Não precisou pensar muito pra concluir que, quando uma página não é de fato virada, novidades tendem a envelhecer quase que imediatamente.

Tudo culpa dos pequenos lábios que, quando falam, mandam o resto todo se calar.

3 comentários:

M. disse...

a sensação simples de não querer encarar que uma pagina virou, as vezes é pior que não virar.

Anônimo disse...

Texto poderosissimo!! Muito muito bom!! Parabéns, ganhou um fã.

LADODENTRO disse...

A prova de que a página pode ser virada é quando simplesmente deixa de ser lida, vivida, querida. Virar a página sequer relida é farejar outras letras. E paudurescências. Só não saquei a calcinha empapada...