segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Cross living (pro Caneta, lente e pincel)


Não era câncer nem Aids nem gastrite nem gonorréia. Também não parecia síndrome do pânico, esquizofrenia, espinhela caída ou coisa que o valha. Aconteceu com Anita o que poderia ter acontecido com qualquer mulher contemporânea: o fracasso havia lhe subido à cabeça. De uma só tacada, tinha perdido o carro, o dinheiro da poupança, o pseudonamorado, a dignidade e a vontade de levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Estava ali, em plena segunda, bebendo sozinha num boteco de quinta, tentando viciar os dados de seu destino pra ver se alguma coisa mudava, mas esse negócio de depois da tempestade vem a bonança é coisa de quem usa facebook demais e perdeu a noção de que realidade só se cura com champagne.

O fato é que tinha acabado de perceber que, apesar dos pesares, vida não é um veículo do qual se dê pra descer antes do ponto. Quer dizer, tem gente até que desce, mas aí é outra história, afinal, uma moça como ela, criada pra ser feliz de doer e crescida em meio a doses cavalares de amor materno, não tinha o direito de desistir àquela altura do campeonato. Seria uma atitude tola, algo como perder a chance de se certificar de que a esperança é a última que dorme num país de insones. Assim, seguiu em frente, na busca por algo que lhe anestesiasse.

Qual não foi sua surpresa quando se pegou na fila do cinema. Tinha tanto tempo que não entrava numa sala escura que não fosse o quartinho fedorento da boate que seu ex-pseudonamorado adorava frequentar, que chegou a sentir uma pontinha de vertigem. A propósito, sim, o rapaz gostava de ambientes de sexualidade indefinida. Gostava também de se vestir de mulher de vez em quando, mas hoje em dia isso nem chega a ser uma questão, posto que é tendência, como quase tudo que era estranho há dez anos. Ficou pensando se sua tristeza um dia também viraria tendência e se as pessoas se esqueceriam completamente de como é o cheiro da felicidade, mas, decidiu, ao invés de tanta divagação, comprar uma pipoca para parecer normal. Sentou-se na quinta fila, que é onde costumava ficar quando era menina e sua irmã, pacientemente e a meia-voz, lia-lhe as legendas que passavam rápido demais para sua tenra idade. O filme era meramente um detalhe. O que estava em jogo ali era a busca. Até mesmo porque, quem não sabe o que procura, não percebe quando acha.

Acabada a sessão, foi dar uma volta no shopping. Tinha certeza de que compraria tudo que visse pela frente, afinal, a chateação havia lhe roubado uns quilos e era a hora exata de tentar entrar naquela calça quarenta que desejava desde que saiu da puberdade. Mas alguma coisa lhe distraiu na vitrine da frente: era um bloco de notas simples, de capa dura, recheado de páginas em branco. Sentiu um calafrio na espinha e percebeu que as palavras seriam as únicas capazes de lhe tirar da desconfortável posição de vítima dos fatos e das pessoas. Não deu outra. Vomitou toda a disenteria emocional que lhe acometia. Dez horas e três blocos depois, era uma outra pessoa, tanto que já podia olhar para trás sem torcicolo e para frente sem fotofobia.

Tinha se curado, ou melhor, tinha feito uma faxina colossal debaixo do tapete de sua alma.

Porque letra guardada é que nem cabelo: precisa de vento para poder voar.

3 comentários:

maria rachel oliveira disse...

AMEI!!!!

Fabiane Albuquerque disse...

Viva ao grito que salta os muros
viva ao murro que soca o ar
viva ao beijo que no vento plaina
sem mais, viva o medo, a coragem e o tentar

Daniela Palheiro disse...

Texto da Poli é que nem biscoito Elma Chips: Impossível comer um só!!!
Arrasando mais uma vez, garota!!!
Beijos da fã Dani