domingo, 6 de setembro de 2009

Coisas de Antônio Torres

Trechos de “Um cão uivando para a Lua” (1972), romance de estreia de Antônio Torres

-Diz que você me ama, nem que seja mentira. Dizzz. Eu preciso ouvir isso. Preciso, preciso. Diz, diz. Você me ama? Você me ama? Ai. Vou morrer. Eu morro. Mor-ro. Diz de novo, nem que seja mentira.
-Você é completamente louca, mulher. Você me mata. Mas vou morrer feliz. Juro.
E tudo recomeçava
-Você me ama? Diz, nem que seja mentira. Diz de novo. Isso-é-tão-bom...
Caí para um lado da cama e a mulher começou a chorar.
Acordei.
Lila, Lila, Lila! Onde está você?

Acendo a luz e fico sentado na cama. O meu quarto tem uma mesa cheia de remédios, papéis rabiscados, alguns livros, papéis em branco e muitos envelopes. Estou todo molhado. Que horas serão? Bom, e que importância tem isso? Estou passando pelo tempo, estou sendo devorado pelo tempo. Pego uma toalha e me enxugo. É dezembro, parece. As ruas estão mais barulhentas do que nunca. E eu no mesmo lugar.

Chego em 1971 com 28 anos de idade e um nó na garganta.

Ainda assim prometo cavar no fundo da minha angústia alguma sobra de energia, não de todo estragada, para empregá-la até a última gota nas possibilidades de amanhã. Sei. Tudo isso é muito desagradável. É duro demais você assumir a sua própria dor.

Enquanto o sono não vem, escrevo uma carta pra Lila.
Crioula.
Já recebi uma tonelada de propostas. Uma de um velho amigo que acaba de chegar da Europa e me propôs ver os slides que ele fez. Garantiu-me ter batido umas fotos incríveis. Oferta extra: Jantar e uísque ou vinho, à minha escolha. Outra, foi de um sujeito que quer porque quer me mostrar um filme que ele fez com as crianças na praia. Um terceiro quase me mata porque eu recusei um convite para dar umas voltas em seu Opala, pelo Minhocão. Achou um absurdo um cara vindo do Rio não querer ver São Paulo by night. Não posso enumerar tudo. A memória não está ajudando.

Nos povoados, nas cidadezinhas, onde quer que houvesse uma casa, havia sempre um número incrível de crianças. Eu perguntava a idade de uma, ela fazia um gesto negativo com a cabeça. Não sabia. Então o pai, ou a mãe, respondia: 10, ou 11, ou 12 ou 9. Todas pareciam, porém, ter metade da idade que tinham. Era doloroso ver todos aqueles meninos barrigudos e com o tamanho do corpo inteiramente desproporcional ao tamanho da cabeça. Mas não era apenas neles que eu estava pensando. Isso também era outra coisa que eu já tinha visto antes, no Sertão, no Junco.

Eu já tinha sido um daqueles meninos, eu era a soma deles todos.

O dia que eu contei a Lila sobre o menino que eu fui, ela se ajoelhou a meus pés e beijou meu pau. Foi uma dose forte demais. Lila, quando menina, teve uma educação. Como se apresentar. Como andar. Como sentar à mesa. Como cumprimentar. Como dormir, como acordar. Tudo isso para debutar no Country Club. Tudo isso porque ela era uma moça de família, até, é claro, quando descobriu que trepar era o melhor de tudo e o resto não tinha a menor importância. Eu não sei falar de Lila usando palavras normais do vocabulário educado, porque Lila é uma tremenda puta, porque é putamente sensível, inteligente e louca. Naquela noite, em que ela, com reverência (quase digo com contrição), se ajoelhou para me prestar aquela homenagem pagã, eu descobri ter afinal encontrado alguém que chegara ao exagero de me elevar à categoria de herói. Pura e simplesmente pela simples condição de ainda estar vivo – e sendo capaz de funcionar.

Agora eu compreendia o significado de tudo.

Mais tarde, voltei a pensar em Lila e me perguntei até que ponto ela estava compreendendo a extensão de minhas dificuldades, chegando a temer que ela qualquer dia desses se cansasse de tantos trancos e barrancos. Eu já tinha vivido tempo suficiente para ter descoberto que as mulheres, de modo geral, procuram fugir de homens negativos, aqueles que estão sempre a braços com encrencas pessoais e demasiadas encucações, sem considerarem as causas e circunstâncias que os arrastam para baixo. Vislumbrei essa possibilidade como se estivesse avistando um terremoto. Sim, eu a amava. Não queria perdê-la.

Minha memória é uma cova funda onde enterrei todos os meus mortos.
Minha cabeça é uma montanha esburacada, por onde escoam todos os detritos do mundo.
Meu coração não bate, apanha.
E os meus pés estão sempre tropeçando.
Pára, pensamento, pára. Um instantinho só, por favor. Preciso esquecer.
O quê? Tudo
Chega de sofrimento, quero o alento.
É a memória – e não a dor – que faz você se lembrar de centenas de ruas selvagens e ermas.
Li isso em “Luz de Agosto”, mas já faz muito tempo.
Cite um absurdo.
O brado retumbante.
Outro.
Um homem rastejante.
Mais outro.
O céu da pátria nesse instante.
Cite o pior de todos.
A morte.
Diga qualquer coisa.
A paz a gente só encontra na morte ou quem morre acaba?

-Quem está aí com você?
-Ninguém
-Mas você está falando com alguém.
-Sim. Comigo mesmo. Posso?
-Está falando sozinho, então?
-Conforme o costume. Posso?
-Acho melhor você vir atender o telefone. É melhor do que ficar aí falando sozinho.
-Obrigado, já vou.

Sim, eu fazia uma porção de coisas, desde pequeno, mas a impressão que me deixavam era a de que não sabia fazer nada. Então, menino ainda, passei a declamar Castro Alves em praça pública, em dia de festa de escola e o povo dizia: -Menino danado. Foi assim, doutor, que descobri que queria ser jornalista. Eu sabia o que os outros não sabiam. A partir da descoberta disso, passei a ser perdoado por não ser bom no cabo da enxada. Entende? O senhor está entendendo agora?
-Amanhã você me conta o resto - disse ele. - Preciso sair.
E foi embora.
Fiquei andando pelo pátio, sozinho, sem pensar no que diria a seguir, nem no que tinha que fazer.
Eu leio os jornais todos os dias, meu chapa, e já não me inquieto com isso. Vejo as coisas e não sinto mais vontade de vomitar. Eles falam, eu escuto. Pra mim, chega. Acho que não vale a pena espernear.

No céu, algumas estrelas brilhavam e eu achei que o negócio era comigo. Um cão, que passara o tempo todo gemendo para a Lua, agora sorria.

Um comentário:

M. disse...

boquete e a conversa com si mesmo... é muito bom.

tipo sensa