segunda-feira, 10 de março de 2008

jiló, cigarro e ressaca moral

francine costuma gostar de tudo. na verdade, existem apenas 3 coisas que não suporta: jiló, cigarro e ressaca moral. a história com o jiló vem desde criança, quando sua mãe pianista, preocupada em proporcionar à filha uma alimentação saudável, dizia:
- jiló está para a culinária assim como debussy está para a música: ambos são amargos, de difícil digestão, mas totalmente indispensáveis.
ainda menina, achava esse papo uma bobagem mas tinha de obedecer às diretrizes maternas. quando finalmente fez 18 anos e teve permissão para parar de comer jiló, se sentiu tão adulta que resolveu comemorar dando uns tragos no cigarro de uma amiga. não deu muito certo porque seu organismo não se adaptava bem ao vício e sempre que fumava ficava enjoada e acabava abraçada ao primeiro vaso sanitário que aparecia pela frente, o que não era legal, principalmente nessa fase da vida em que a única coisa que realmente importa é provar que se sabe fumar, beber, fazer sexo e dar gargalhadas altas. assim, parou com as baforadas e começou a beber. a verdade é que poucas pessoas gostam tanto de sentar num boteco quanto francine. a bebida foi responsável por muitas coisas interessantes em vários momentos de sua vida, desde conhecer pessoas até escrever roteiros de filmes, contos e cartas de amor. foi bebendo que aprendeu a gargalhar de si mesma e, em 90% das vezes, acordava se sentindo ótima, louca para telefonar para as amigas e fofocar sobre os detalhes da noite anterior. porém, nos 10% dos casos restantes, a coisa fazia mal à moça. francine demorou para detectar que a tal da ressaca moral era justamente a triste percepção de ter sido traída pela própria memória e de ter perdido a chance de terminar a noite sem se expor tanto.
o curioso é que para ela os porres nunca foram uma ameaça à sua integridade física: sempre conseguia chegar em casa, nunca quebrou as pernas, nunca tirou a roupa em público, nunca foi estuprada nem assaltada, nunca vomitou no colo de ninguém nem jamais se esqueceu de como se coloca camisinha com a boca. ainda que nada de muito errado tivesse acontecido, acordava por vezes sobressaltada, com a sensação de que tinha feito merda. e essa sensação era mais forte quando se esquecia de conversas inteiras. para disfarçar, fingia que estava tudo bem, rezava pra pessoa também não se lembrar de porra nenhuma, engolia um possível pedido de desculpas junto com o engov e a coca-cola e se isolava no seu casulo, único lugar aonde não sentia medo de si mesma.
francine ainda tinha um agravante: era geminiana. é fato notório que geminiano quando resolve pensar, se tortura. quando resolve parar de pensar, não consegue. e quando acha que conseguiu, sente culpa. a culpa corroía sua alma de tal forma que resolveu dar um basta nessa situação. não sabia exatamente o que tinha de fazer. só sabia que precisava quebrar esse paradigma, mesmo que ainda lhe faltassem as ferramentas. foi pra cozinha, pegou a faca mais afiada e cortou umas 3 cebolas. as lágrimas, a princípio fisiológicas, foram aos poucos caindo sentidas. foi quando francine se deu conta de que não era a birita que estava fora do lugar, nem as conversas apagadas da memória, nem as desculpas que ficaram por serem pedidas. o que precisava de freio era seu impulso kamikaze de ir até o fim sempre, mesmo quando faltava pouco para amanhecer e quase nada deveria ser feito.
parou de usar a bebida como véu e resolveu encarar suas dores e frustrações de frente, como mulherão que era. ligou para sua melhor amiga e sentaram as duas no botequim predileto de santa teresa. junto com a cerveja, pediu uma porção de jiló. se pegou saudosa de quando era obrigada a sentir gosto tão amargo quanto o da rejeição, emoção espectral projetada que a acompanhava desde a infância, por mais que fosse amada, respeitada e elogiada. foi só aí que entendeu o instinto de proteção da mãe pianista e sua tosca analogia entre música e culinária. depois do primeiro brinde, sacou finalmente que a ressaca moral é somente o porre que não deu certo. se deu conta de que precisava gostar mais de si mesma e de que deveria estar pronta para se perdoar por inteiro.
decidiu também que de agora em diante os rapazes é que viriam atrás dela antes do amanhecer.

Nenhum comentário: