segunda-feira, 10 de março de 2008

A certeza de Cristina

Cristina já havia se acostumado a varrer aflições pra debaixo do tapete e tinha o que se pode chamar de alma auto-limpante. Porém, dia desses, quando estava varrendo uma magoazinha besta, dessas que dois chopps costumam dar conta, a poeirada insurgiu-se como um ciclone contumaz, revelando a magnitude da tristeza que há tempos a acompanhava de forma sistemática e sorrateira. Por mais difícil que fosse uma descoberta desse porte, no fundo, chegava a ser um alívio poder finalmente ter motivos para abdicar do título que vinha ostentando desde sempre: o de baluarte da alegria flamejante. Dali em diante, um inexplicável apreço por si mesma tomou-a de assalto e algumas pequenas grandes atitudes foram tomadas.

Suas amigas de balada, no entanto, ficaram confusas:

- Parar de fumar, tudo bem, mas parar de beber é um pouco demais, não acha?
- Ah, sei lá, num tô a fim.
- Mas vem cá, qual a graça de sentar num boteco com as amigas e não encher a cara?
- Ué, pelo simples prazer de estar com as pessoas!
- Porra, mulher, qual foi? Virou crente?

Cristina até poderia entrar no mérito da questão, mas não estava a fim de destrinchar os meandros de sua psiquê. Queria apenas beber água tônica e jogar conversa fora. Assim, puxou um papo irrelevante qualquer e conseguiu mudar o rumo daquela prosa.

Uma semana depois, pra variar, saiu com as mesmas amigas. Como dessa vez não estava com paciência para papos irrelevantes e queria encerrar de vez a especulação sobre suas decisões, achou por bem fazer uso de uma mentira sincera:

- Tudo bem, vocês querem mesmo saber por que parei de beber?

O silêncio que se seguiu revelou a curiosidade daquele grupo de fêmeas.

- Parei porque quero emagrecer,ok? Conheci uma pessoa e estamos começando a sair. Não quis dar de primeira, pois preciso estar confiante. E se tem uma coisa que faz minha auto-estima ir pelo ralo é não conseguir olhar pra minha própria bunda sem o auxílio de um espelho, esteja ele no teto ou no armário embutido.

Fernanda, a mais animada da mesa, tomada por uma solidariedade pungente, partiu firme em direção ao resgate da auto-confiança da amiga:

- Mas você não precisa de espelho pra ver sua bunda, Cris! Quê isso? Olha o exagero, vai!
- É, Nanda, concordo, eu até que tô bem. Ainda! Mas todas sabemos que a birita dá uma dilatada básica no estômago e arredores. Se eu não me cuidar, essa gordurinha em volta da cintura vai se acumular e, quando eu menos perceber, terei passado de gostosona a grandona. E aí o caminho é sem volta!

Sentindo um certo desconforto no ar, fez um infalível apelo de mulher para mulher:

- Meninas, eu fiz 30 já tem um tempinho. Não posso mais ficar marcando touca! Quero passar uma boa imagem pra esse rapaz, tem algum mal nisso?

Fernanda chegou a se levantar, tamanha era sua incredulidade:

- Gente, essa mulher tá chamando o bofe de rapaz! Vocês estão crendo nisso? O bagulho é sério! Um brinde a essa doida!

Depois do brinde, como era de se esperar, veio o momento mulherzinha:

- Conta tudo, gata! Quem é ele? Ele é bem? Já deu pra sacar o calibre da pistola?
- Calma, gente! Vocês não conhecem, é um amigo do meu irmão, um analista de sistemas. E a pistola parece satisfatória, sim, suas taradas!
- Que vaca você! Arrumou um macho pirocudo pra pagar suas contas! Agora vai fazer a linha magra, abstêmia e viciada em esportes, né?

O celular de Cristina toca. Ela finge ser o pretendente do outro lado da linha:

- Oi, tudo bem? Me dá só um segundo?

Se afasta da mesa para ter privacidade. Na volta, paga sua tônica e aproveita pra sair em grande estilo:

- Meninas, era o gatinho. Vai passar lá em casa pra gente ir ao cinema e depois jantar no japonês. Fui!

Na verdade, era sua mãe ao telefone, avisando que havia passado no mercado e que, portanto, os estoques de coalhada, blanquet de peru e gelatina de morango tinham sido perfeitamente repostos.

Dentro do táxi, Cristina sentiu-se um pouco culpada por ter mentido pras amigas. Mas sabia, lá no fundo, que aquela mentira era de fato uma verdade projetada, pois uma certeza sem remetente dava o ar de sua graça e anunciava que, assim que conseguisse alcançar o olho do furacão, estaria pronta pra descer até o porão de sua consciência e executar uma faxina colossal.

Depois da limpeza, finalmente, poderia pensar em acordar todos os dias na companhia de um só homem, que soubesse fazer surpresas e que gostasse de esportes intra-aeróbicos de baixo impacto e longa duração. Sem intuito competitivo, obviamente.

Nem era pedir muito.

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