segunda-feira, 10 de março de 2008

Amor que chora

Quando Glorinha era aspirante a atriz, adorava festejar Nelson Rodrigues:

- Ele abusava das bizarrices e não tinha medo do ridículo! Um gênio em estado puro!

Com o tempo, desistiu do teatro. Hoje faz estágio em um jornal e foi escolhida para cobrir a Festa Literária de Paraty. Assim que soube da novidade, reuniu as amigas e foram comemorar à moda carioca, aplaudindo o pôr-do-sol no Posto Nove. Sentia-se a mais competente das estagiárias e chegou a achar que aquelas palmas todas eram só para ela.

- Gente, não tô acreditando! Eu vou cobrir a FLIP logo no ano em que o homenageado é o Nelson. Assim que acabar esse baseado vou pra casa pensar na minha pauta.

O entusiasmo não era à toa. Ali estava sua grande chance, não só pelo tamanho do evento, mas, especialmente, pelo quarto com cama de casal que teria só para ela. Assim que desfez as malas, aprendeu a dividir seu tempo: de dia, pensava em perguntas brilhantes; à noite, arquitetava uma forma de não tomar café da manhã sozinha.

Logo nas primeiras perambulações noturnas, teve medo de virar estatística ortopédica, pois as pedras irregulares de Paraty ameaçavam até o mais estóico dos tornozelos. Movida por pura autopreservação, passou a olhar mais para o chão do que para os meninos, desestruturando drasticamente todo o planejamento feito em prol da paquera.

Decepcionada, entra no primeiro boteco e pede cachaça local. Só então repara no cartaz com uma das inúmeras frases lapidares do homenageado: “Só acredito em amor que chora”. Enquanto aquelas palavras reverberavam em sua bela cabecinha, notou do outro lado da rua um varão de queixo reto, olhar firme e andar levemente claudicante. Tratava-se na verdade de um belo coxo, que sabia fazer poesia, pirão de peixe e surpresas.

Pela primeira vez na vida Glorinha fez sexo sem burocracia e, inteiramente molhada, engoliu em seco todos os preconceitos criados no cativeiro de sua alma classe média bacaninha.

Acabada a festa, na segunda pela manhã, voltou para a redação. A vidinha tinha que continuar, era o único jeito.

Nas curvas da estrada, chorou de molhar o sutiã.

Agora sim tinha cacife para festejar Nelson Rodrigues.

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